Dossier

Da relação eros/ágape e de uma omissão na encíclica de Bento XVI

Pe. Jacinto Farias
...

1. Quem imaginaria que Bento XVI havia de escolher para tema da sua encíclica programática a questão central do cristianismo, o amor/caritas, a nota específica da imagem cristã de Deus e da imagem cristã do homem? Na verdade o que está em causa nesta encíclica é a relação entre Deus e o homem, o Deus e a alma de Sto. Agostinho, a indicação das suas condições de possibilidade e do caminho a seguir para lá chegar, que passa pela disposição para a renúncia, para abnegação e para o sacrifício. Hoje são muitos os que insinuam a ideia de que para amar basta ser-se espontâneo e natural, deixar-se levar pelas próprias inclinações ou desejos, numa miragem de felicidade alcançável ali, quase ao voltar da esquina. Aqui está a causa da solidão, dos traumas e depressões, precisamente pela degradação do eros e do amor à fruição extesíaca dos sentidos, como se o prazer pudesse representar um ideal de felicidade!... 2. Aparentemente simples, a linguagem de Bento XVI é complexa, e exige do leitor atenção e disciplina mental, introduzindo-o à necessária purificação e ascese a que o eros/amor, não só na sua dimensão especulativa, mas também prática obriga. O Santo Padre diz tudo o que há a dizer sobre a delimitação filosófica e teológica da vivência existencial para a qual o termo eros/amor remete. E as suas observações acerca da sua ausência (do eros) na tradição teológica, em contraposição com o termo ágape, praticamente ausente na tradição filosófica, indiciam a demarcação crítica entre o cristianismo e a filosofia. O cristianismo não rejeita as grandes intuições da razão filosófica. Não sendo uma ideologia, mas o seguimento de Jesus Cristo, vivo na Igreja e nos sacramentos, o cristianismo assume a natureza, purificando-a, transformando-a em profundidade. A ágape que não é o eros, antes quase o seu contrário, resulta do eros purificado e redimido, da transfiguração da lógica possessiva do desejo, na lógica oblativa da caritas. O eros precisa de morrer para si para que possa ser ágape. 3. No momento cristológico da sua reflexão, o Papa indica o segredo da transfiguração redentora do eros em ágape: a contemplação do lado aberto de Cristo (Jo 19, 37: Deus caritas est, 12). Aqui está a chave de leitura cristã para o entendimento da ágape, esse morrer de amor por aqueles que se ama. E assim ágape é a resposta a um dom: o cristão ama, porque foi amado primeiro. 4. Ao afirmar que o eros precisa de ser redimido segundo a lógica da cruz de Cristo, Bento XVI pressupõe que a dinâmica do desejo é contradita não apenas pela infinitude inalcançável do seu objecto, mas também pelo pecado, ou seja, pela preferência de si, o agostiniano amor sui que leva ao desprezo de Deus e dos outros, e que degrada por conseguinte o eros à condição de um prazer desumanizante. Não foi o cristianismo que envenenou o eros, mas sim o pecado, no qual todo o homem está envolvido, quer acredite quer não, e que é um encurvar-se sobre si mesmo, colocar-se como o centro do mundo, sendo que o eros não se esgota na pulsão sexual, mas se estende à lógica do desejo desenfreado na sua ambição desmesurada pelo poder ser senhor absoluto de si, a ser como Deus! O pudor a que hoje se não dá atenção, - não só no que diz respeito à esfera sexual, mas também à ambição pelo poder -, é ainda um rebate de consciência que recorda ao homem que está perante um assunto delicado, que exige muito cuidado, sob pena de ferir irremediavelmente o coração e levá-lo a morrer não de amor, mas da ausência dele, na imolação nos altares do prazer ou da ambição. 5. Não foi o cristianismo que envenenou o eros, mas as suas contrafacções, nas suas formas maniqueias, cartesianas, jansenistas ou outras. O cristianismo autêntico é antes o campo da vivência em profundidade do amor, do amor purificado, na prática da disciplina, da ascese e do sacrifício. Ao cristão tudo é permitido, mas nem tudo convém! Por isso é urgente que se cultive uma equilibrada estética do corpo, como espaço de encontro, de mediação e de transcendência! Não é o corpo templo do Espírito Santo? Não é chamado a participar na glorificação de Cristo na ressurreição? Não é pelo corpo que acedemos ao encontro com Deus na oração, nos sacramentos, na eucaristia, na fraterna caridade? Uma estética teológica do corpo vai ensinar-nos, como se pode ver na vida dos santos, que o amor é tendencialmente casto, pela pacificação das paixões, pela capacidade de renúncia e de sacrifício, segundo a lógica da cruz. 6. Mas há um vazio, uma lacuna ou uma omissão nesta bela encíclica de Bento XVI: não fala da amizade. Ora este é um assunto de extrema importância hoje, precisamente porque o excesso de eros e de amor levou a que fosse esquecida, quando a amizade é fundamental na relação entre as pessoas e na ordem social. Porque o eros/amor evoca ou mesmo exige um elevado grau de união e de comunhão quase física, tendencialmente só se realizará ou na relação homem-mulher, o que no cristianismo só é legítimo no casamento, ou na experiência mística, o que se dá porém em graus de intensidade que não podem cobrir a vida normal na sua quotidiana banalidade, campo que só pode ser preenchido pela sã amizade. Bento XVI preferiu centrar a sua reflexão sobre a caritas, onde muitos aspectos da amizade estão presentes, sobretudo na segunda parte da encíclica, quando fala da caridade como prática do amor. Na primeira parte, porém, não a menciona, quando se esperaria, tendo-se concentrado na relação, aliás, dialéctica, entre eros e ágape, na busca de uma reconciliação, que só é possível pela graça. E neste sentido a ágape cristã, na sua perfeição, é a transfiguração total do eros, que assim como que deixa de o ser, porque na sua suma perfeição, que só se dá na experiência mística, é mais um morrer de amor, um perder-se, mais do que encontrar-se. Ora a normal e banal existência quotidiana não vive nesta tensão permanente de um grande amor ou de caridade heróica! 7. Encontramo-nos aqui no limiar do mistério, o que Pascal designava como a grandeza e a miséria do homem, dir-se-ia a sua condição trágica, o seu mistério abissal e incompreensível. E de um modo muito discreto e quase como sugestão Bento XVI diz o essencial sobre o amor/caridade, convidando os católicos e todos os homens de boa vontade a não se conformarem com o mundo (da moda, da ideologia, do culturalmente correcto!...) e a descobrirem a beleza daquele amor que é o fruto da abnegação, da renúncia e do sacrifício, porque, como diz o Senhor, se o grão de trigo lançado à terra não morrer não frutifica ou quem quiser ganhar a vida há-de perdê-la. Mas para lá chegar não será necessário antes redescobrir o dom da amizade, essa relação desprendida e quase indiferente de quem se quer bem para um bem maior? José Jacinto Ferreira de Farias, scj, Professor de Teologia na UCP


Bento XVI