Dossier

Diálogo Inter-religioso – imperativo e urgente

Fernando Soares
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«O caminho para uma paz que permita aos homens viver em cooperação e entendimento só se faz através dum diálogo atento»

Com o desabrochar da ambiência democrática em Portugal, no final dos anos 80, princípio dos 90 do século passado, abriu-se às diversas confissões religiosas não católicas romanas um espaço de televisivo na RTP2 com o programa semanal “Caminhos”. Mais tarde, ainda na década de 90, iniciou-se o programa diário “A Fé dos Homens”, no mesmo canal, com 30 minutos de duração, dividido entre 22,5 minutos para a Igreja Católica Romana e os restantes 7,5 minutos para as outras confissões religiosas, cristãs e não cristãs. Assim se procurou levar à prática a liberdade religiosa assumida na Constituição Portuguesa (não havia ainda a Lei da Liberdade Religiosa, que foi promulgada somente no ano de 2001), criando condições de apresentação e reconhecimento público para as Igrejas Ortodoxa, Anglicana, Evangélica, Metodista, Presbiteriana e outras e das Religiões Judaica, Islâmica, Hindu, Budista e Bahá'í., em equiparação proporcional ao espaço televisivo dado à Igreja maioritária. E, por decorrência, desenvolveram-se relações mútuas de conhecimento e de respeito e consideração entre os representantes daquelas instituições. Entretanto, nos Encontros Ecuménicos protagonizados, desde os primeiros anos daquela década de 90, pela Comissão da Doutrina da Fé da Conferência Episcopal Portuguesa e pelo COPIC, Conselho Português das Igrejas Cristãs (constituído pelas Igrejas Lusitana, Metodista e Presbiteriana), foi ponderada a possibilidade de construir-se um Pavilhão Inter-religioso na Expo98, um espaço onde os visitantes daquele evento de repercussão mundial pudessem descansar, meditar e orar no contexto das suas expressões religiosas próprias. O assunto foi, posteriormente, assumido pelos Encontros Inter-confessionais (onde além daquelas se juntava a Aliança Evangélica Portuguesa) e daí levado à prática com a aceitação e presença de algumas das religiões que participavam na Comissão para as Emissões Televisivas. Registe-se que os custos da sua construção e da manutenção nos 4 meses da Exposição foram pagas em termos proporcionais pelas organizações religiosas envolvidas. O Pavilhão foi visitado por centenas de milhares de pessoas e a sua programação constituiu uma verdadeira manifestação de tolerância religiosa, respeito mútuo e serviço a quem dele se utilizou. Em Portugal, país maioritariamente cristão, aquela actividade inter-religiosa não foi tida em demasiada conta nas prioridades da agenda da comunicação social. Não fora a cobertura informativa que lhe foi feita pelas organizações envolvidas e certamente teria passado pelo quase desconhecimento do grande público. O Conselho Mundial de Igrejas e a Conferência das Igrejas Europeias, quando dela tomaram conhecimento, evidenciaram o inédito da iniciativa, mas sempre num contexto de convivência ecuménica de aceitação tolerante. Numa palavra, ninguém teve a percepção da real e profética importância daquela experiência. É que faltavam 3 anos para o 11 de Setembro, em Nova York... Depois aconteceu o 11 de Março de 2004, em Madrid, e o 7 de Julho de 2005, em Londres. A partir daí fomos chamados a uma outra postura e um outro enquadramento para a relação entre religiões, pois, o mundo ganhou consciência de que, como dizia Roger Garaudy, “Toda a revolução profunda nasce da conjunção de uma miséria e de uma revolta com uma esperança e uma fé” (1) Na verdade, foi a partir daquele atentado contra as torres gémeas do World Trade Center, no início do século XXI, e nos que lhe sucederam, que o mundo ganhou em consciência o significado da globalização, que, lenta mas inexoravelmente, se vai impondo e moldando o modo de estar das pessoas, abrindo oportunidades imensas, é certo, mas, também, colocando desafios de complexidade acrescida à existência humana. Ora, parece que as circunstâncias políticas vão dando razão ao teólogo Hans Kung ao afirmar “Não haverá paz entre as nações sem a paz entre as religiões”(2). Isto é, o novo enquadramento político, tecnológico e societário em que nos encontramos fez emergir o diálogo inter-religioso como imperativo, necessário e urgente, particularmente nas sociedades do Ocidente democrático. E aí, porque normalmente maioritárias, cabe às Igrejas cristãs um papel de relevo, diria, de “pivot”. Por exemplo, este mês de Dezembro, entre 1 e 4, realizou-se uma Consulta Inter-religiosa em Edinburgo, na Escócia, sob as relações entre Cristãos e Muçulmanos, de iniciativa das Igrejas da Comunhão de Porvoo (uma Comunhão de Igrejas Anglicanas do Reino Unido, Espanha e Portugal e Luteranas da Suécia, Noruega, Finlândia, Lituânia, Estónia, Letónia, Islândia e Dinamarca). Cada uma daquelas Igrejas foi solicitada a convidar representantes membros das Comunidades Islâmicas dos seus países para participarem na Consulta. Na nota de apresentação do evento podia ler-se “a Consulta tem por objectivo falar com pessoas de outra religião, não sobre outras religiões”. Ou seja, pretendia-se um diálogo interessante, desafiante e frutuoso, com, se possível, recomendações para o trabalho futuro daquela Comunhão de Igrejas. Também é de assinalar o trabalho laborioso que a Igreja Anglicana Inglesa tem vindo a realizar no seu país com actividades várias, convidando os hierarcas das religiões mais representativas (em particular a Islâmica) para conferências, foruns e outras iniciativas de conhecimento mútuo e de diálogo teológico aturado e sério. Em Portugal, tanto quanto é do meu conhecimento, para além de algumas declarações e eventos de mera expressão mediática, pouco ou nada se tem feito nesta área. Ainda, na semana passada, me dei conta disto mesmo ao assistir ao Encontro “Juventude e Diálogo Inter-religioso” promovido pelo Alto Comissariado para a Integração e Diálogo Cultural, que teve lugar no Museu da Fundação do Oriente. Segundo o respectivo programa, que o incluía nas actividades promovidas para comemorar o Ano Europeu do Diálogo Intercultural, o Encontro propunha-se “abordar a questão da tolerância religiosa, dos direitos humanos e do diálogo inter-religioso como forma de alcançar uma sociedade mais tolerante, realçando o papel dos jovens neste processo”. Ora, depois de uma interessante, histórica e longa apresentação do Dr. Mário Soares sobre o tema, na sua qualidade de Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, seguida de uma intervenção necessáriamente política do Ministro da Presidência, Dr.Pedro Silva Pereira, foi dado a cada um dos jovens representantes de diversas religiões 5 minutos para uma intervenção. Ora, isto é pouco, muito pouco, para que se lhe chame diálogo. Conseguiu-se, é certo, a unanimidade na afirmação da necessidade do diálogo para a escuta de uns pelos outros e consequente aprendizagem das diferentes maneiras de estar, através do qual se podem desenvolver atitudes de reconhecimento, respeito e aceitação entre pessoas de diferentes identidades. No final, o moderador do painel, resumindo as diversas intervenções, concluía pela urgência do diálogo inter-religioso na sociedade portuguesa como um factor essencial de equilíbrio numa sociedade democrática. Anotei uma das suas frases "não buscamos um Esperanto, mas queremos ser poliglotas”. Com isto, pretendeu-se dizer que é necessário avançar na aprendizagem da diversidade, refazendo o sentido da tolerância que deve ser de estima e não de exercício de poder. Voltando à célebre frase de Hans Kung, ele considera que a paz entre as religões só se pode fazer através do diálogo entre elas. Mas, não é um qualquer diálogo, pois, explica: “Não haverá diálogo entre as religiões se não se investigam os fundamentos das religiões” (3). Ou seja, é necessário compreender (e fazer compreender) que o caminho para uma paz que permita aos homens viver em cooperação e entendimento só se faz através dum diálogo atento, honesto e consequente entre culturas e religiões. Muitos anos antes já Roger Garaudy afirmava em tom profético: “O que está em vias de nascer não é apenas uma concepção nova da política, mas um formidável movimento de fé” (4). Quão bom será que as Igrejas cristãs, examinando o tempo, não impeçam a acção do Espírito, caminhem a primeira milha, e, assim, façam juz à grandeza do seu Senhor. Fernando Soares, Bispo da Igreja Lusitana NOTAS: 1 - Roger Garaudy in “Ainda é tempo de viver”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1981, pág. 26 2 - Hans Kung in “O Islão – História, Presente, Futuro” 3 - Hans Kung, idem 4 - Roger Garaudy, idem, pág. 21


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