Dossier

Diálogo: Um roteiro para a paz

Pe. José Vieira
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José Vieira, Director da Revista Além Mar

O Papa Bento XVI, na mensagem «Na Verdade, a Paz» que escreveu para o Dia Mundial da Paz, celebrado no primeiro dia do ano, sublinha que «a paz é anseio irreprimível presente no coração de cada pessoa». E indica um roteiro para a alcançar: «É preciso recuperar a consciência de estarmos irmanados num mesmo e, em última análise, transcendente destino.» O Santo Padre define a paz «não como simples ausência de guerra, mas como convivência dos diversos cidadãos numa sociedade governada pela justiça […]. A verdade da paz chama todos a cultivarem relações fecundas e sinceras, estimula a procurarem e percorrerem os caminhos do perdão e da reconciliação, a serem transparentes nas conversações e fiéis à palavra dada». Juntos pela paz Este roteiro para a paz, desenhado em termos claros e definitivos, fez-me palmilhar as alamedas da memória e levou-me até à Etiópia. Estávamos em 2000. O conflito fronteiriço etio-eritreu – um exercício inútil que matou mais de 70 mil pessoas – já levava dois anos. Os mecanismos da propaganda etíope esforçavam-se para manter o país unido à volta da justeza da guerra numa onda de patriotismo e de demonização dos Eritreus sem precedentes. O governador de Solamo, um distrito perdido nos montes verdes do Sul, convocou os líderes religiosos, porque alegadamente as respectivas comunidades não estavam a responder à chamada patriótica. Os dirigentes católicos, luteranos e evangélicos da aldeia de Haro Wato, reuniram-se para gizarem uma resposta comum ao desafio do governador: celebrar a Sexta-Feira Santa com jejum e um encontro ecuménico de oração. O fruto da renúncia era para os deslocados da guerra e as vítimas da fome, no Norte. A celebração conjunta representava um desafio sem precedentes para uma aldeia onde as diversas confissões cristãs – uma meia dúzia – se marcavam e desafiavam mutuamente, sobretudo as seitas. A assembleia de oração decorreu na clareira à frente do mercado – que se realizava nesse dia – à sombra de uma enorme cruz de eucalipto. Cada confissão desenvolveu um tema específico relacionado com a paz. O encontro ecuménico ultrapassou as expectativas e juntou mais de meio milhar de pessoas. Até os seguidores da religião ancestral se uniram ao evento para rezar pela paz, um valor essencial da própria tribo. O evento foi uma experiência única e marcante: «Embora sejamos todos cristãos, temos vivido como inimigos. Jesus juntou-nos aqui», disse alguém. Para outro participante «foi Deus que nos convocou para estarmos juntos como família de Jesus». Ponto de encontro O encontro de oração ilustra a importância que o diálogo inter-religioso representa para a paz do mundo contemporâneo como resposta à onda fundamentalista que vinca a superioridade religiosa como legitimador da confrontação. Vivemos numa sociedade globalizada e com as fronteiras religiosas cada vez mais esbatidas. Num contexto religioso plural, os crentes não se podem ignorar e resguardar-se na segurança de um falso complexo de superioridade. É no diálogo a partir do espaço partilhado da humanidade comum que se pode construir a paz. No fundo, trata-se de reeditar o gesto de São Pedro quando visitou a casa de Cornélio, um oficial gentio, que se ajoelhou para o receber: «Levanta-te que eu também sou apenas um homem!», respondeu o pescador galileu. Um gesto duplicado por Paulo e Barnabé em Listra quando os locais, extasiados com a cura de um coxo, os confundiram com as encarnações de Hermes e Zeus e se preparam para lhes oferecer um sacrifício. O diálogo inter-religioso como encontro através de uma humanidade comum baixa as barreiras da desconfiança e das falsas seguranças. Quando os discípulos se queixaram a Jesus da concorrência desleal de alguém que não sendo do grupo andava a fazer exorcismos em nome do Mestre, receberam uma resposta à altura: «Quem não é contra nós, é por nós!»


Dia Mundial da Paz