Dossier

Dizer a verdade em tempo de guerra

Pe. Tony Neves
...

Tony Neves, Jornalista e Missionário Espiritanos

É uma ousadia. Diria mais, é um pôr a cabeça a prémio. A guerra é a mais frontal violação dos direitos humanos. Aceitá-la como meio para resolver problemas é criar um problema sem solução. Que o diga a história. Razão tem Sophia de Mello Breyner ao propor ‘a paz sem vencedores e sem vencidos’. A guerra, na melhor das hipóteses, tem vencedores e vencidos e, regra geral, apenas vencidos. Neste contexto de violência assumida, que lugar pode haver para quem quer, com a isenção possível, falar do que se passa? Pouco e de alto risco. A experiência que fiz no Huambo e Kuito-Bié, entre 1989 e 1994, falam claro a este respeito. Com já alguma distância, gostaria de partilhar algumas conclusões a que cheguei. 1. A verdade está na ponta da espingarda Quando há combates, instala-se a lei do mais forte que, no caso, é o chefe militar. Ele diz e está dito. Quem ousar dizer diferente torna-se inimigo a abater e, regra geral, abate-se mesmo! Quem se põe do lado da vítima, quem questiona as razões das guerras ou o modo desumano como se fazem as batalhas e as ‘limpezas’ que se lhe seguem... ou tem as costas muito protegidas ou desaparece. Verdade nua e crua que faz com que os jornalistas (não me refiro aos que se vendem ao poder...) nunca tenham lugar nestes espaços. 2. Quanto menos mediática é a guerra mais sofrem os jornalistas Há guerras esquecidas, à porta fechada, que não interessam aos grandes e, por isso mesmo, não têm cobertura mediática. Aqui, vale tudo porque ninguém vê nada, ou melhor, todos vêem tudo e falta quem amplifique o grito das vítimas. Só se pode falar em surdina (falar alto, ninguém arrisca) quem tem por detrás uma instituição com alguma força. E, em muitos casos, nem estes. Os grandes genocídios fazem-se nestes ambientes e a comunidade internacional só reage e põe as mãos à cabeça depois dos massacres. Hipocrisia ou atitude de reconhecimento das barbáries, não sei. Mas o certo é que os grandes deste mundo chegam sempre tarde demais. Nunca evitam os incêndios, só chegam para a avaliação dos danos causados pelo fogo! 3. O martírio dos jornalistas e missionários Todos os anos se publicam os números de jornalistas e missionários mortos. São aproximados. Não me parece por acaso que sejam das ‘profissões’ mais flageladas do mundo. Isto de amplificar gritos dos fracos, denunciar atrocidades cometidas pelos grandes, enfrentar o fogo das armas, chamar à razão quem usa sempre argumentos ‘alternativos’ a esta... é coragem de quem entrega a vida por uma causa. E, verdade seja dita, se há causas que mereçam a entrega de uma vida, a da verdade é uma delas. 4. Dias de tragédia para as populações Os senhores da guerra dizem sempre que a fazem para defender populações indefesas. E massacram-nas, roubam-lhes a liberdade, os bens materiais, a paz e, muitas vezes, a vida! Ironias da história. Não é difícil concluir que as guerras existem para perpetuar ou cobiçar interesses alheios. E, nesta onda de avareza, os pobres são as vítimas. Na maioria das guerras, as populações simples são vitimadas pelos dois exércitos, à vez. É essa a experiência que tenho de Angola onde, em muitas aldeias, num dia atacava um exército (pilhava, matava, destruía, violava...) e, no outro, retaliava o ‘inimigo’ fazendo rigorosamente a mesma coisa. Aos que sobravam, mais não restava que fugir à procura de um lugar onde não fossem ‘rusgados’ pelos militares. A fome, o desespero, o abandono, as doenças... tomavam conta deles. O futuro desenhava-se sombrio. E não há nada mais terrível que não permitir às pessoas rasgar horizontes de futuro. As guerras conseguem-no! 5. Guerra: solução para quê (m)? Quando me dizem que promovem uma guerra para resolver problemas eu pergunto sempre que problemas é que resolveram? Nenhum! Pelo contrário, agravaram-nos! A ONU devia ter mais força para intervir nos palcos de guerra. Não para fazer mais guerra, mas para retirar as condições da sua continuidade. Citando dois paupérrimos países da Ãfrica, alguém dizia que a guerra entre ambos acabou no dia em que avariou o tanque que cada um tinha! É urgente agir no âmbito dos lobbies da indústria das armas. Um vespeiro onde ninguém ousa pôr a mão e que, sobretudo nos países ricos (USA, por exemplo) interfere na própria eleição do Presidente e Senadores. Enquanto se intensificar a fabricação de armas, estas têm de ser vendidas e utilizadas para não se estragar o negócio. Bem chorudo, por acaso! 6. Para a frente, jornalistas Alguém tem de continuar a dar corpo à luta pela verdade, pela justiça, pela Paz e pelos direitos humanos. Os missionários e os jornalistas são quem ocupa a ‘pole position’ nesta grande corrida contra a guerra e pela dignidade das pessoas. Haja alguém com coragem para enfrentar os poderes que espezinham a dignidade das pessoas. Falar alto e calar fundo tem de ser a missão dos jornalistas. Custe o que custar. A vida, talvez. Mas, sobretudo, muita dignidade e convicção. Contra pessoas destas ninguém há-de ganhar. Tony Neves, Jornalista e Missionário Espiritanos


Comunicações Sociais