Dossier

Eleições em tempo quaresmal

Pe. Manuel Correia Fernandes
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O director da «Voz Portucalense» alerta: "O grande déficit dos políticos não é o das palavras mas o da conversão. Ou mesmo o déficit do silêncio."

Não faltou quem tivesse aproveitado a relação temporal das eleições deste ano com o carnaval. Por mim, preferi relacioná-las com a Quaresma, até porque, mais que em tempo de carnaval, a campanha eleitoral coincide com os primeiros dias da Quaresma, os que correm até ao dia 19 de Fevereiro. Quaresma é tempo penitencial dos cristãos e particularmente dos católicos. Todas as religiões definem tempos especiais de penitência, porque a religião (ligação a Deus) tem que partir sempre da conversão. Quem não se converte não encontra o caminho da salvação nem o da fé, e muito menos pode aspirar a salvar os outros (o país, a economia, a cultura, a saúde, a educação). O grande déficit dos políticos não é o das palavras mas o da conversão. Ou mesmo o déficit do silêncio. As nossas televisões e a comunicação social em geral não costumam falar muito da Quaresma, porque o mundo de hoje é avesso á conversão, e por isso é que anda tão tresmalhado. Quando chegam os dias do Ramadão muçulmano, as televisões desdobram-se em transmissões de dados e reportagens. Sobre a Quaresma, não. Conceito excessivamente católico, que é coisa que não existe em Portugal. Este ano falarão certamente ainda menos, porque se levanta altaneira a campanha eleitoral, que também não deixa de ser para muitos uma forma de penitência, mesmo que por ela poucos se convertam. Embora o tempo de Quaresma vá para além das eleições, importaria que ele ajudasse os partidos políticos a definir parâmetros de actuação que favorecessem mais a convivência cidadã do que a luta política. Ou que dessem á política um essencial sentido de cidadania. Seria bonito que candidatos e dirigentes transmitissem ao povo coisas tão simples como a seriedade das propostas eleitorais, o respeito intransigente pelo adversário político, o equilíbrio reflectido e sensato das mensagens, o respeito pelas maiorias e também pelas minorias, o sentido de que a política deve tornar-se uma pedagogia da convivência e não uma qualquer forma de luta fratricida. Em todas as intervenções seria desejável o equilíbrio das palavras e das propostas, para não se criarem ilusões falazes aos cidadãos (uma boa forma de jejum: o jejum das palavras e das promessas). Que os dirigentes partidários assumissem o sentido de Estado, sobretudo aqueles que aspiram a exercer cargos governativos. Que as propostas se perfilem em ordem à resolução dos problemas económicos (os omnipresentes, como deuses universais), e sobretudo dos sociais de que o país padece: que uns não façam esquecer os outros. Que o sentido de uma certa austeridade começasse pelas campanhas, formas visíveis de exibicionismo e de gastos supérfluos, nesse aspecto deseducativas para a mentalidade colectiva. O esbanjamento dos meios condiz com o esbanjamento das palavras. É de esperar, e devia ser de afirmar e proclamar, que fossem definidas propostas de rigor e de contracção equilibrada dos serviços do Estado, não à custa dos trabalhadores, mas dos evidentes gastos supérfluos e exibicionistas dos detentores dos cargos políticos. Por nós, proporíamos, como forma de agilização e eficácia das decisões necessárias (como já dizia António Vieira, um dos maiores males da administração é a perda do tempo e a proliferação da inútil e perniciosa da burocracia), uma imediata diminuição de Ministérios, com a supressão dos inúteis (como Igualdade, ou Solidariedade, ou outros entes de razão, que não são actividades objectivas mas apenas entidades abstractas), num governo que simplifique a vida pública e promova a iniciativas dos cidadãos. Quanto mais ministérios, mais burocracia e mais sobreposição de competência que depois de degladiam mutuamente. Não se tem ouvido neste domínio mais do que alguma tímida sugestão, logo abafada pela voragem dos lugares influentes. Importaria que a acção política fosse considerada e fosse de facto um serviço público, e não uma ambição de poder. Então teríamos uma campanha eleitoral quaresmal: que convertesse mentalidades e modelasse outras formas de proceder. Pe. MANUEL CORREIA FERNANDES*


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