Não dispõe a Comissão Nacional Justiça e Paz de instrumentos que lhe permitam avaliar o impacto efectivo que terá tido a reflexão proposta na Carta que dirigiu aos cristãos no começo da última Quaresma, através do texto “Um outro olhar sobre as desigualdades e a exclusão social. Um outro compromisso com um mundo mais justo e solidário”.
Contudo, podemos afirmar que nos surpreendeu, pela positiva, o eco que o texto mereceu em variadíssimos meios, cristãos e não-cristãos, e na própria comunicação social.
Algumas pessoas viram no documento uma sistematização de preocupações que já tinham e não ousavam expressar, sentiram-se reconfortadas por verem um órgão da Igreja católica apresentá-las de modo corajoso e comprometido com a eliminação das causas e, através do texto, sentiram um impulso a um maior envolvimento na procura de caminhos alternativos para uma sociedade que se deseja mais próspera, mas também mais fraterna e solidária.
Para outras, a carta foi um despertar para um olhar mais solidário e comprometido com as vítimas da injustiça e para os mecanismos geradores da desordem que se instalou na economia e nas relações sociais e constituiu um primeiro passo para alguma forma de desinstalação e questionamento sobre o status quo e, talvez, um corte com a pretensa fatalidade dos processos económicos.
De outras pessoas, nos chegou a interpelação de que eram necessários gestos concretos, acções a empreender pelas próprias comunidades cristãs, em prol da justiça e da paz.
Acredito que, é importante e mesmo fundamental mudar o nosso olhar. Sem que tal aconteça, continuaremos a passar ao lado da realidade sem reparar nos marginalizados e excluídos que, todos os dias, vão engrossando as estatísticas, e que são gente com rosto, irmãs e irmãos nossos, a quem o sistema vigente retira dignidade, vez e voz.
Sem mudar radicalmente o nosso olhar e sem consciencializarmos que a realidade, tal como a conhecemos, não é uma fatalidade, mas sim objecto de invenção e de iniciativa de cada pessoa, seus grupos de pertença e seus corpos sócio-políticos, não criaremos condições de abertura a novas iniciativas visando a promoção da dignidade humana, a equidade na partilha dos bens e dos recursos e o reforço da inclusão e da coesão social.
Tudo quanto se faça para aprofundar o nosso olhar, pessoal e comunitário, sobre a nossa realidade social e a necessidade de tornar a economia que a sustenta mais justa e humanizada não deixará de dar fruto. Porém, a gravidade das desigualdades e da exclusão social em Portugal (como no resto do Mundo) é tal que é urgente inventar soluções para lhe fazer face, com a pertinência requerida pelas circunstâncias.
Em todos os tempos, as comunidades cristãs souberam suscitar respostas à altura dos desafios próprios do tempo, para irem ao encontro das necessidades do próximo, o que é para nós, hoje, cristãs e cristãos do século XXI, testemunho e impulso para nos lançarmos, com redobrada audácia e vigor, na busca de novas soluções para o mundo em que nos é dado viver.
Além da mudança de olhar, são, pois, necessários gestos e acções concretas.
Sem querer entrar em pormenori-zação excessiva, ocorre-me sugerir que cada paróquia, comunidade religiosa ou outra se disponha a criar alguma instância de reconhecimento das necessidades sociais na respectiva área de influência e promova, junto das pessoas carenciadas da sua área geográfica, espaços de acolhimento e encaminhamento, suprindo, quando for caso disso, lacunas existentes nos serviços públicos e proporcionando as ajudas possíveis.
Por outro lado, há que promover a maior responsabilidade social das empresas e envolver neste movimento os gestores e quadros técnicos cristãos, bem como os próprios trabalhadores e suas organizações sindicais, por forma a que a economia esteja ao serviço das pessoas e não inteiramente subordinada aos ditames do lucro. Que, ao menos nas administrações das obras da Igreja, se cuide da adopção de critérios éticos e de boas práticas de responsabilidade social, designadamente no que se refere à gestão dos recursos humanos, á ecologia, às relações com os utentes, ou com os fornecedores.
Haverá, ainda que lembrar , que existirá sempre lugar para a partilha de bens no socorro aos mais carenciados e, sabendo nós, que a fome é, presentemente, uma realidade para cerca de 200 mil pessoas em Portugal, como recentemente era noticiado nos órgãos de comunicação social, não há que ter vergonha, penso, de promover, ao nível das paróquias, onde o fenómeno exista, obras sociais que prestem refeições e/ou forneçam alimentos para confeccionar às pessoas empo-brecidas e, melhor ainda, que se faça dessas obras pontes para a dignificação das pessoas e sua inserção social.
Por último, não deixarei de mencionar a importância de que se reveste, nos nossos dias, o envolvimento de todos os cidadãos na defesa de causas comuns. No contexto da problemática que nos ocupa, cabe destacar, como merecendo a nossa atenção, causas como as seguintes: acolhimento de imigrantes e promoção dos seus direitos económicos, sociais e cívicos; denúncia de corrupção, designadamente branqueamento de capitais e assuntos congéneres como seja o sigilo bancário e demais medidas de transparência de contas pessoais e de empresa; defesa do perdão da dívida externa dos países mais pobres; regras de comércio justas e não penalizadoras dos países em desenvolvimento; regimen de marcas e patentes e suas iniquidades do ponto de vista dos interesses dos mais pobres; tributação dos capitais transaccionados nas bolsas mundiais e constituição de um Fundo de desenvolvimento mundial; criação de alguma forma de governância mundial de raiz democrática; direito à água e riscos da sua privatização; questão ecológica; etc.
Para a CNJP, será de grande enriquecimento e estímulo ter conhecimento de ecos e iniciativas a que a Carta tenha dado origem.
Façamos nosso o apelo de João Paulo II, em Assis, em 1986: “Enchamos os nossos olhos com visões de paz.”
Abril 2004
Manuela Silva
Vice-presidente da CNJP