Dossier

Façamos as boas festas

Micael Pereira
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Fernando J. Micael Pereira, Prof. Universidade Católica Portuguesa

As sociedades em que os bens são mais escassos, como a sociedade tradicional portuguesa tão inspirada pelo cristianismo, compreenderam bem a razão de ser das festas e de elas serem espaçadas ao longo do ano. São espaçadas mas retornam todos os anos na mesma altura, construindo um processo em que há esperança e renovação.

A festa é fundamental para quem quer viver uma vida com enredo comum, com um sentido que se pode renovar e partilhar com outras pessoas. São ainda mais importantes para quem sente as dificuldades da vida, sejam elas económicas ou de outra ordem: para quem tem falta de esperança, de felicidade, de alegria, de acompanhamento, de bem-estar seja em que domínio for.

Não só contrastam, e bem, com o dia a dia como o seu sentido ilumina a restante vida. Elas são marcos no tempo, pontos altos por que se anseia e que se recordam. São um sal que dá sabor à vida.

O Natal é um dos três grandes marcos festivos da cultura portuguesa, como o são igualmente a Páscoa e as festas de verão. Pelo meio ficam os dias do quotidiano, os do esforço e privação que antecedem as festas, e os da viva recordação que as prolongam.

A festa do Natal é de todas a mais terna e encantadora, porque celebra o nascimento de um bebé que é Deus. Nela se partilha a alegria, a luz que rompe as trevas, o aconchego familiar, a esperança que todo o início e toda a semente evocam. Há cantares, há prendas que vão do ouro da realeza e da riqueza, ao incenso do sagrado e à mirra da nossa materialidade; há os pastores e toda a comunhão profunda com a natureza. Assim o Natal irradia felicidade e simplicidade, aproxima, reconforta, dá alento e aquece o coração para todo o ano.

Nós e a Europa estamos a reaprender a sermos mais modestos e também mais justos socialmente. Custa-nos, protestamos, mas temos de reaprender a não vivermos sempre em festa, a ritmarmos a nossa vida com tempos de abundância e tempos de escassez, a tornarmo-nos mais próximos dos que vivem connosco.

Hoje o comércio, as compras e as iluminações tornaram-se também símbolos do Natal. Só é lamentável que por vezes façam esquecer o nascimento de Jesus. Mas não tem nada de ser assim. Desde que não sejam escandalosamente exibicionistas, eles também têm o seu lugar. Sobretudo quando se associam com a música, as decorações, as iluminações, criam um ambiente que impõe a própria festa. Não se limitam a evocar os acontecimentos, mas dão azo a que se realize a própria prática festiva.

A ação não se limita ao seu desenvolvimento público, mas decorre na própria privacidade de cada casa e na expetativa da futura reunião familiar porventura mais alargada, implicando ou não a celebração litúrgica.

Tem igualmente lugar a partilha não só com pobres e desconhecidos, mas também com os familiares, colegas e amigos que tantas vezes desconhecemos ao longo do ano. O que se passa em cada casa é reproduzido por todos de mil maneiras e todos sabem que o fazem, porque tantos factos o demonstraram.

O gesto de descobrir o que será a prenda, o que fazer ou comprar, implica que me interrogue sobre mim, sobre o outro e seus gostos e necessidades. É um desafio ao encontro, à compreensão, à proximidade. Faz todo o sentido o gesto de trocar prendas que nos liguem às pessoas que amamos, ou de quem é esperado que sejamos amigos. O dinheiro, a criatividade e o gesto de quem dá, são benditos porque nos restauram como irmãos.

Revigorar os laços de amizade e de vida familiar, dispor-se a uma vida mais simples, estar mais atento a quem precisa seja de bens, seja de consideração, são dimensões a que Deus hoje nos chama a cada hora que passa, desafiando-nos a fazermos crescer a nossa vida com alegria, leveza e generosidade. Se as prendas de Natal contribuírem para dar algum alento ao comércio e seus empregados, que dele tanto precisam, também estaremos perante um recurso que sempre foi precioso para as economias mais contidas. Foi aliás o comércio quem soube de maneira atual revigorar esta solenidade, reforçando uma dimensão familiar despida de ideologias militantes contra o próprio catolicismo.

A alegria e o revigoramento do Natal são luzes que brilham no céu dos nossos projetos dando-nos esperança de sermos melhores e de conseguirmos encontrar quem de facto está ao nosso lado.

Façamos festa, tenhamos e criemos boas festas na plenitude de sentido da expressão. Bem precisamos delas para sermos capazes de alimentar a esperança, o trabalho, a mudança de vida que tão necessária é.

Fernando J. Micael Pereira
Prof. Universidade Católica Portuguesa

 



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