Dossier

Gerir bem o melhor património do país: as pessoas

D. António Marcelino
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D. António Marcelino, bispo emérito de Aveiro

Vive-se sob o signo do dinheiro. Finanças e economia determinam o agir dos governantes. Os paradigmas de sucesso e insucesso partem daí e a aí retornam. Não se pode negar a importância da boa gestão dos bens materiais, dada a situação do país, possibilidades existentes, encargos assumidos, restrições impostas, obra a realizar. O essencial e a razão de ser da governação é, porém, a atenção aos cidadãos.

O mais importante património a ser bem gerido, são as pessoas concretas: crianças, jovens, adultos e mais idosos; saudáveis, doentes e com deficiências; da cidade, do litoral ou das aldeias do interior; empregadores, trabalhadores e desempregados; residentes, emigrados e imigrados; gente letrada ou apenas de letras gordas. Pessoas para acolher com respeito, reconhecer suas capacidades naturais e adquiridas, propor, em cada caso, medidas concretas de apoio e promoção pessoal, proporcionar igual reconhecimento de direitos e deveres. Pessoas, valor incalculável que dá sentido a tudo o que é património histórico, cultural, religioso, artístico. Nada que tenha valor, o tem à margem das pessoas.

Não têm faltado na comunicação social, críticos a caracterizar, com cargas de negativismo, o nosso povo. Indolente, pessimista, individualista, dependente, pobre de ideias e iniciativas, incapaz de responsabilidades. Como que a afirmar-se, sem réplica, que Portugal é país de gente inútil, sem rumo e sem sentido para a vida. Que os governantes que chegam não leiam por esta cartilha de folhas negras.

A história, mesmo sem o inebriamento de glórias do passado, mostra que o povo não é assim. Pensemos na gesta migratória de décadas recentes, na capacidade de recuperação de milhares de retornados, na sensatez natural de um povo que, depois da revolução de Abril, encontrou, no exercício da liberdade democrática, o seu caminho. Uma leitura atenta, porém, diz-nos que tal, como noutros países, não nos falta gente válida. Só quando nos tocam governantes fracos, o povo mostra, por um tempo, mais fragilidades e menos confiança em si. Um dia, porém, acorda da alienação imposta, e grita corajoso: “Basta!”

De seu natural, os portugueses, vencidas sujeições e dependências, descobertas inverdades na informação recebida, são gente capaz de fazer história, ir mais longe, gente a que não falta honestidade, bom senso e capacidade de agir, tanto no dia-a-dia, como por ocasião de crises. Quem explora as emoções do povo e o engana com promessas vãs, nunca o terá na mão. O tempo mostra o logro, restando apenas os presos a desejos e os pagadores de dívidas. Qualquer governo é legítimo se servir o povo. Será condenado a seu tempo, sempre que se servir do povo.

Leis, iniciativas e decisões do poder não podem esquecer as pessoas. Elas são a sua razão de ser. Ora o povo, por vezes e de muitos modos, não tem sido bem tratado. Mais parece um ausente dos projectos de quem governa. Desta realidade devem estar conscientes os novos governantes. Fruto de tudo isto, a natalidade e a vida humana já concebida, foram atacadas de morte; a família, desfigurada e depreciada, sem medidas que respeitassem a sua dignidade e favorecessem a sua missão; os pais, reduzidos a responsáveis ocasionais dos filhos, com o Estado a pretender ser seu dono; a educação escolar, com poucos horizontes e exigências; as crianças e os adolescentes, iludidos com miragens e empurrados para uma educação sexual de mero prazer, ausente de esforço e rumo; a televisão, prisioneira das audiências e dos interesses a intoxicar o povo com superficialidades; a política partidária e o futebol, a ocupar tempo televisivo privilegiado, que se devia repartir para a formar cidadãos, abertos aos desafios sociais e culturais; as instituições mais representativas, que vivem junto das pessoas e conhecem, como ninguém, as suas preocupações e aspirações, menos ouvidas e tidas como concorrentes do poder político; a publicidade sem regras, atirando os incautos para um consumismo irresponsável; doentes graves esperando longos meses por consultas de especialidade e cirurgias urgentes; os mais velhos, muitos deles válidos e capazes de colaboração, não apreciados pelo seu saber, nem integrados onde podiam prestar ainda acção de relevo social… Esta amostragem não esgota a situação.

A vivência democrática destrói-se por situações indesejáveis. Vários países da Europa, feridos por desilusões contínuas, o vêm sentindo. Situações fáceis de compreender, deste tempo, e com efeitos à vista. Não é possível uma renovação que implique reformas urgentes, sem capacidade para acabar com privilégios e favores, sem determinação para enfrentar as forças corporativas, sem uma purificação que exorcize as formas de demagogia, especialmente de quem manda.

Sabemos o mal-estar que se instalou por compadrios e privilégios e encheram os cargos públicos de gente incapaz e inútil, pagando favores e serviços, que só o foram aos partidos. Esta não é a ética de governantes conscientes do seu dever e do testemunho que deles se espera.

As organizações corporativas não podem funcionar apenas como defensoras de seus membros, dando-se por dispensadas de olhar o conjunto e colaborar para o bem de todos. Num tempo de crise, se elas forem travão de reformas sociais necessárias, incriminam-se a si próprias e pode questionar-se o seu direito de existência. O tempo é para que todos olhem a realidade e se dêem as mãos para superar crises, não para usar da sua força na rua ou nos salões. Só o diálogo aberto e sério, e a prática de uma ética de serviço à comunidade, ajudarão as corporações a serem construtoras do bem comum. O povo sabe julgar e dirá se assim é.

A demagogia será sempre prova de fraqueza de quem não é capaz de fazer e convencer. É destrutiva do ambiente social, constrangedora da participação alargada, geradora de tensões e divisões indesejáveis. O demagogo não respeita as pessoas e seus direitos, não reconhece erros, culpas e limitações próprias. É ainda o povo que mostra o vazio de vidas, às quais só o poder outorgou mérito.

Nestas três frentes, a luta é dura para governantes dominados pelo sentido de serviço, preocupados com o clamor das pessoas e a decisão de respostas válidas. Nenhum exercício do poder, por si mesmo sempre duro e exigente, é compensado por honras recebidas. A recompensa por servir está no próprio serviço e modo de o realizar, como serviço a todos. A honra de quem governa está no reconhecimento público do que se faz e como se faz. Quando se servem as pessoas, delas se pode esperar gratidão, não fingida e interesseira, mas reconhecimento pelo que elas significam para quem as serve e por elas aceita a luta difícil do dia-a-dia.

 

D. António Marcelino, Bispo emérito de Aveiro

(texto escrito segundo a anterior ortografia)



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