Inculturação no Novo Testamento
A inculturação é um fenómeno típico de todas as religiões que conseguem entrar em diálogo profundo com a mentalidade, o modo de viver, as tradições e os valores de um povo concreto. Em breve, a inculturação é o processo com o qual uma fé vinda de fora entra na cultura de um povo para a transformar e para ser por ela transformada.
Mesmo se a palavra inculturação se encontra no vocabulário cristão só depois do Concílio Vaticano II, e nós gostamos de a usar particularmente quando falamos do cristianismo em Africa, a realidade que tal palavra exprime encontra-se claramente presente entre nós já desde os primeiros passos do cristianismo.
A realidade fundamental da nossa fé, a pessoa de Jesus de Nazaré, é um homem perfeitamente identificado com o contexto social, cultural e religioso do seu povo e do seu tempo. Nele, Deus revelou-se, veio ao encontro da humanidade, dialogou connosco, perfeitamente integrado na cultura e nas tradições religiosas de um povo concreto. A sua posição cultural não foi passiva ou servilista; ele foi também capaz de criticar e contestar, mas fazia-o sempre a partir de dentro daquela cultura que ele mesmo tinha assimilado completamente.
O carácter “judeu” da cultura de Jesus e das primeiras comunidades de discípulos logo após a sua morte e ressurreição é evidenciado pelas mudanças que foi preciso fazer logo que a fé cristã começou a passar dali para o contexto cultural helenístico, na nova comunidade de Antiochia (Act 13; 15). Ali, como em todas as outras comunidades fundadas pouco depois por Paulo e pelos seus colaboradores, certas coisas que aos cristãos judeus pareciam fundamentais (circuncisão, a lei de Moisés, ...), eram irrelevantes para os cristãos que provinham de uma outra tradição cultural e religiosa, o mundo greco-romano. As comunidades que Paulo fundou na Grécia ou as que viviam em Roma já estavam a formar um tipo de cristianismo organizado e vivido de maneira muito diferente, mesmo se se tratava sempre daquela mesma fé vivida nas comunidades de cultura judaica.
Para muitos teólogos católicos o facto de este processo estar já bem documentado no Novo Testamento indica que aquilo que nós hoje chamamos ‘inculturação’ é parte da revelação que recebemos no Novo Testamento e por isso mesmo deve ser considerado algo de indispensável sempre que a fé cristã passa de uma cultura para outra.
Evangelho e Culturas Africanas
Em África encontramos uma riqueza imensa de culturas muito diferentes entre si. Mas há boas razões para as considerar semelhantes pelo menos em alguns aspectos fundamentais. Penso no profundo sentido de solidariedade quase-ontológica entre as pessoas de uma mesma comunidade humana que se exprime com o axioma, “eu sou porque nós somos”; penso no conceito vital do universo (o conceito filosófico de vitalogia) em que o mundo humano está intimamente entrelaçado com mundo espiritual, animal, vegetal, mineral; pensemos também no sentido de comunhão existencial e de inter-dependência profunda entre a comunidade dos vivos neste mundo e a comunidade daqueles que vivem além da morte.
O encontro de diálogo entre o Evangelho e as culturas africanas continua hoje a realizar-se ao nível destes valores profundos, na consciência das pessoas e comunidades humanas, e não só em termos de gestos, danças ou outros rituais que gostamos de ver nas celebrações da liturgia.
Considero como âmbitos privilegiados e particularmente fecundos deste encontro as pequenas comunidades cristãs e os grupos de catecúmenos adultos. O Evangelho encontra as culturas africanas nesses encontros de oração e partilha do Evangelho que se fazem semanalmente em milhares de pequenas comunidades cristãs (SCC = Small Christian Communities) espalhadas por todo o continente mesmo se com articulações diversas nas várias grandes zonas da África. Aí, são os cristãos locais, entre eles mesmos, que recebem o Evangelho e procuram na oração os modos concretos para o viverem e o porem em prática no ambiente concreto em que vivem, e na continuidade ou descontinuidade com as tradições culturais e religiosas que herdaram dos seus antepassados. O segundo âmbito privilegiado deste diálogo entre a fé cristã e as tradições culturais e religiosas da Africa sãos os grupos de catecúmenos adultos, particularmente nas Igrejas onde se conseguiu já deixar para trás um catecumenato tipo ‘escola que prepara ao exame de doutrina que é preciso superar para aceder ao baptismo’, e se aposta seriamente num itinerário catecumenal em que os métodos didácticos típicos das iniciações tradicionais Africanas (ex. aprender participando, a figura do mestre de iniciação, a dimensão comunitária do processo de amadurecer na vida, os rituais de passagem, etc.) são colocados ao serviço de Cristo e conduzem a um baptismo vivido como um autêntico renascer para uma vida nova, com um forte sentido de pertença e de corresponsabilidade na nova comunidade cristã.
Desafios e esperanças
Liturgia e oração. A música africana e a dança sagrada são parte integrante da celebração solene da liturgia em quase todo o continente. O ‘Rito Zairense’ usado há muitos na R.D. do Congo mostra bem como se pode celebrar a santa Missa em profunda sintonia com a sensibilidade cultural e religiosa típica das tradições africanas: abundam o canto e a dança ritual, a oração e a pregação dialogada, os momentos de comunhão com os antepassados, com a natureza, ... elementos que encontram a sua plenitude na pessoa de Cristo presente na comunidade de celebra a Eucaristia. Há também formas locais de oração que se estão a desenvolver pouco a pouco, penso particularmente à oração com os doentes, e nos importantes rituais ligados ao mistério do nascimento e da morte. O início e o fim da vida, assim como a dor nos momentos de doença grave, são sempre momentos profundamente comunitários que precisam de ser celebrados na oração.
A família. Um âmbito da vida cristã africana onde se encontram alguns sinais de esperança, mas que enfrenta ainda muitas dificuldades e incompreensões. Em muitas sociedades africanas a construção de uma nova família não é uma questão privada entre os noivos, mas envolve profundamente as famílias alargadas de ambos. Além disso, é um processo longo que passa por várias fazes. Muito frequentemente é só depois dos primeiros filhos que uma família atinge o grau de estabilidade necessária à celebração do sacramento do matrimónio católico. Alguns pastores consideram estes casais jovens em ‘estado de adultério’, quando na verdade constroem a própria família seguindo o itinerário que desde há séculos a sociedade aceita como moralmente bom e apto para a estabilidade das famílias. Isto significa que a maior parte das famílias formadas por católicos são excluídas da vida activa da Igreja durante os seus primeiros anos de vida familiar. Um desafio pastoral imenso.
O ministério na Igreja. Em muitas zonas do continente, as vocações ao ministério ordenado são abundantes. Mas não é sempre fácil discernir bem as motivações autênticas. Um estilo de vida por vezes copiado sem oportunas distinções dos padres europeus ou americanos, torna difícil aos sacerdotes africanos uma vida ministerial bem inserida nas comunidades locais. Em muitas sociedades continua a ser muito difícil aceitar como chefe de uma comunidade um homem que não constituiu a sua própria família. Deve-se dizer, porém, que muitos sacerdotes e bispos vivem esta situação difícil com admirável generosidade e fidelidade à Igreja.
Observações conclusivas
A Palavra de Deus ao povo. Multiplicam-se as traduções da bíblia nas línguas nativas africanas, bem como os programas pastorais para as divulgar entre o povo. Esta presença abundante da Palavra na vida dos fiéis abre o campo a um diálogo muito fecundo entre a fé e as culturas locais, que levará as comunidades a serem cada vez mais profundamente cristãs e mais autenticamente africanas.
Pastores locais. À frente da grande maioria das dioceses africanas, encontramos hoje pastores locais. Os bispos missionários são cada vez menos. Uma vez superada a tentação inicial se serem ‘mais romanos que o papa’, estes pastores tornam-se mestres sábios que guiam e encorajam as comunidades no processo de diálogo profundo entre o cristianismo e a riqueza das tradições africanas.
Tempos longos. Não esqueçamos que foram precisos muitos séculos de caminho, por vezes difícil, antes de termos conseguido elaborar uma cultura euro-peia cristã. Serão precisas ainda muitas gerações para chegarmos a algo de semelhante em África. Mas temos boas razões para trabalhar com confiança: todos os elementos importantes estão presentes para que, neste continente, o Espírito nos guie na direcção de uma Igreja profundamente fiel a Cristo e amplamente enriquecida pelas culturas e tradições africanas.
Pe. Fernando Domingues, Missionário Comboniano