Dossier

Irmão Roger: a confiança do coração

António Marujo
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Um rosto luminoso e transparente, um sorriso que falava ainda antes e para lá das palavras. Por todo o mundo, muitos milhares de pessoas - e não apenas cristãos - aprenderam com o irmão Roger, de Taizé, o significado e o valor profundo de palavras como confiança, reconciliação, esperança, bondade, vida simples, alegria, felicidade. A sua morte absurdamente violenta, em plena oração da noite, dia 16 de Agosto, na Igreja da Reconciliação, em Taizé, deixou-nos órfãos deste profeta do coração. Em Dezembro último, no primeiro dia do encontro europeu de jovens, promovido pela comunidade de Taizé, em Lisboa, o irmão Roger dizia, em entrevista ao “Público”: “Hoje, com os jovens, por vezes interrogamo-nos: existem realidades que tornem a vida bela e das quais possamos dizer que trazem uma plenitude, uma alegria interior? Sim, existem. E uma dessas realidades chama-se precisamente confiança.” No início de tudo, está a confiança do coração, escreveu também, por diversas vezes. Em tudo, a paz do coração, dizia, numa variante sobre o mesmo tema. “Não tenhas medo, próxima está a confiança, e com ela uma felicidade. Sim, Deus quer-nos felizes”, insistiu, no final da “Pequena Fonte de Taizé”, a regra pela qual se orienta a comunidade. Os próprios encontros europeus de jovens, no final de cada ano - o último dos quais em Lisboa, em 2004 - inserem-se no que a comunidade designa de “peregrinação de confiança através da terra”. O seu olhar e o seu sorriso, que falavam muitas vezes antes que as palavras se soltassem, os seus gestos serenos e bondosos faziam do fundador de Taizé uma pessoa marcante para quem o conhecia. Mesmo os que não acreditam ou os que pensavam diferente dele, tinham no seu coração um lugar especial. A escuta do outro era, para ele, essencial. O que fazia com que cada palavra por ele dita ou escrita tivesse uma força invulgar - capaz de mudar vidas ou ideais. A intensidade da experiência humana e religiosa do irmão Roger fundava-se na convicção da superioridade do bem. Um dos seus últimos escritos foi a carta que dirigiu à família do filósofo Paul Ricoeur, quando este morreu em 20 de Maio. No texto, escrevia: “Desde há cerca de 50 anos [Ricoeur] veio a Taizé várias vezes. Apreciámos muito a sua vasta cultura, e a sua capacidade de exprimir os valores do evangelho nas situações de hoje em dia. Ajudou-nos muitas vezes a reflectir. (...) Um dia, disse-nos estas palavras: ‘Por mais radical que seja o mal, não é tão profundo como a bondade’”. Essa capacidade de procurar no sofrimento oportunidades de redenção não alienava o irmão Roger da realidade do mundo. Ao contrário: fazia-o mergulhar nas realidades mais dramáticas - como os bairros miseráveis da Índia ou do Bangladesh -, ou mais trágicas - como os massacres do Ruanda ou a guerra dos Balcãs. “A confiança em Deus não ignora os sofrimentos de tantos necessitados através do mundo”, afirmava na entrevista citada, de Dezembro passado. “Em vez de fugir das responsabilidades, a confiança possibilita manter-se de pé, onde as sociedades humanas são abaladas. Ela permite avançar mesmo quando surge o fracasso.” Experiência única no cristianismo mundial que reúne monges católicos e protestantes, Taizé tornou-se também uma referência na procura da unidade entre as igrejas cristãs separadas. Na carta “Um Futuro de Paz”, publicada em Dezembro por ocasião do encontro de Lisboa, escrevia que “restabelecer a comunhão” entre católicos, protestantes, anglicanos e ortodoxos “é hoje urgente”. A unidade entre cristãos, acrescentava, “não se pode adiar permanentemente até ao fim dos tempos”. Foi, aliás, a vontade do então pastor calvinista Roger Schutz, que o levou, aos 25 anos, a fundar esta comunidade que antecipa o cristianismo do futuro - uma “Primavera da Igreja”, chamou-lhe João XXIII. A inspiração veio-lhe da avó que, protestante, frequentava também a paróquia católica da aldeia, num tempo mais de ódio que de compreensão. A comunidade não quer seguidores nem mosteiros em outros lugares, pretende apenas sugerir que a comunhão entre cristãos é possível. Os apelos à reconciliação entre cristãos tornaram-se mais fortes nos últimos anos, quando o irmão Roger pressentiu que o ecumenismo arrefecia, apesar dos avanços institucionais. Por isso, o fundador de Taizé reforça, na mesma carta de Lisboa, a ideia de que já há cristãos que “desejam tornar Cristo presente a muitos outros”, pois “sabem que a Igreja não existe para ela própria mas para o mundo, para depositar nele um fermento de paz”. A Igreja, acrescenta, não pode ser um espaço de “severidades recíprocas, mas só transparência, bondade do coração, compaixão”. Autor de uma escrita límpida, um fogo abrasador para quem a frequenta, o irmão Roger fala do cepticismo que atravessa a Europa (“É preciso não parar no caminho”), da paz (são “inúmeros” os que a ela “aspiram” e “procuram preparar um futuro de paz e não de infelicidade”), da descrença (o incrédulo “coexiste” muitas vezes com o crente). Quando esteve em Taizé, há duas décadas, o Papa João Paulo II disse que se passava por Taizé como por uma fonte: o caminhante refresca-se e continua o seu caminho. Numa audiência com o Papa Paulo VI, este ter-lhe-à dado a entender que a comunidade era uma nova Assis. Na carta de Lisboa, escrevia o irmão Roger: “Deus não cria o medo nem a inquietude, Deus não pode dar-nos senão o seu amor.” António Marujo (Versão aumentada do texto publicado no “Público” de 18 de Agosto)


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