Dossier

«Jesus de Nazaré« de Bento XVI, segunda parte - A Importância de um método

Henrique Noronha de Galvão
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H. Noronha Galvão

Com este segundo volume da sua obra “Jesus de Nazaré”, Bento XVI continua fiel ao seu projecto de apresentar a figura real de Jesus Cristo. Considera porém que esta só corresponderá à sua verdade se, para além do rigor histórico do seu estudo, for vista à luz da fé, testemunhada já, aliás, pelos textos que no-lo dão a conhecer. Para o estabelecer é necessário ir além da pura factualidade dos acontecimentos que tecem a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, e considerá-los como expressão de algo mais profundo, do próprio desígnio de Deus que se cumpre e já fora profetizado. Donde a importância das referências ao Antigo Testamento para esta interpretação e nesta obra de Bento XVI. Na análise dessa teia por vezes subtil de conotações evidencia-se a sensibilidade do Autor às possibilidades que oferece a linguística, antiga e moderna. Aliada à importância que Ratzinger reconhece à metodologia histórica – não só neste livro, mas em toda a sua obra teológica (como herança recebida da escola teológica de Munique) – esta sensibilidade às virtualidades da linguagem permite-lhe estar atento ao alcance simbólico de muitas das narrativas neotestamentárias.

Como diz o próprio Autor, o método aqui usado aproxima-se daquele que ao longo da Tradição soube interpretar os acontecimentos da vida de Jesus como “mistérios”, todos se ordenando para o mistério central da Páscoa do Filho de Deus feito homem, que deu a vida e ressuscitou por toda a humanidade. Daí a importância deste segundo volume que incide, precisamente, nesse desfecho da vida de Jesus, no qual se revela, desde a entrada solene em Jerusalém, o verdadeiro sentido da sua missão messiânica.

No prefácio à obra agora publicada, o Autor não só nega ser sua intenção  escrever uma “vida de Jesus” à maneira de uma biografia, como também elaborar uma “cristologia do alto”. Trata-se, como é sabido, de um dos dois modelos cristológicos desenvolvidos durante a primeira metade do sec. V, e a que o Autor também se há-de referir num dos passos do seu livro. Entre esses dois modelos de pensamento sobre o mistério de Jesus Cristo se travaram as grandes discussões que levariam à síntese proposta pelo concílio ecuménico de Calcedónia, em 451. À “cristologia do alto” (katabática), dos monges de Alexandria, se contrapõe então a “cristologia de baixo” (anabática) dos eruditos de Antioquia, na Síria. A primeira toma como lema a citação do prólogo joanino “o Verbo fez-se carne”, contemplando o Filho de Deus que desce até nós, assumindo a nossa carne, a nossa humanidade. A segunda cristologia, numa perspectiva inversa, toma como ponto de partida o homem concreto que Jesus foi, nele reconhecendo a revelação do Filho de Deus. Se o primeiro modelo insiste na unidade de Jesus Cristo como presença do próprio Filho de Deus no meio de nós, o segundo sublinha a dualidade daquele que se revela como verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Para conciliar unidade e dualidade do mistério de Jesus Cristo já S. Gregório de Nazianzo introduzira o conceito de pericorese que, a partir da sua tradução latina circumincessio, podemos designar em português por cincumincessão. Tal como numa “procissão” se caminha para a frente, na “circumincessão” o movimento é circular e implica a mútua e contínua penetração das realidades divina e humana de Jesus, sem que a sua distinção seja abolida. Como dirá o concílio de Calcedónia, não há nesta unidade nem mistura nem separação das duas naturezas de Jesus. Um novo tipo de unidade é tornado possível pela relação criadora do Filho de Deus com a natureza humana por Ele criada, e que Ele assume pessoalmente para salvar a humanidade e a levar à plenitude.

Estamos perante um dos casos mais notáveis do vasto processo que se deu na Igreja Antiga, o qual, mais do que inculturação, deve ser chamado interculturação – como Ratzinger prefere dizer – porque, ao encontrar-se com a cultura de inspiração grega, a fé cristã é ela própria portadora de cultura, é cultura. O processo realiza-se, assim, em ambos os sentidos: se a fé adopta uma nova conceptualidade em virtude desse encontro, também a cultura de inspiração helénica é posta em causa pela fé, por ela é criticada, aprofundada e enriquecida. Já durante o sec. IV, nas discussões sobre o mistério de Deus revelado por Jesus Cristo, um dos princípios basilares do pensamento grego fora abalado, o princípio de que só a unidade é própria da perfeição denotando sempre a pluralidade uma degradação do ser. A fé cristã afirma, pelo contrário, que a plenitude do ser em Deus coincide com a pluralidade trina das pessoas divinas que, como mútuas relações, se revelam na unidade de uma perfeita comunhão. Do mais humilde dos acidentes, na tabela das categorias de Aristóteles, a relação é elevada a significar o mais alto sentido do ser, entendido como pessoal. Por isso, a revelação do Nome de Deus Yahveh feita a Moisés (Ex 3, 14) – entendido a partir da sua tradução grega como “Eu sou Aquele que sou”, isto é, como a plenitude pessoal do Ser –  encontra em Jesus Cristo a sua perfeita revelação segundo a fórmula de S. João: “Deus é Amor” (1Jo 4, 8.16). A verdadeira e definitiva interpretação do Nome de Deus é-nos dada por Jesus Cristo ao mostrar-nos que a plenitude do Ser se identifica com o Amor. Também durante as disputas teológicas do sec. V a perfeição da natureza divina não é vista, no mistério de Jesus Cristo, como auto-suficiência, autarcia, à maneira grega, mas como o poder de se relacionar, de se dar ao outro, realizando com ele uma nova forma de unidade que, ao contrário de implicar o fechamento do ser sobre si mesmo, o entende como total abertura.

Quando o próprio Deus decide vir até nós e fazer história connosco, a tensão implicada no pensamento paradoxal da fé é inevitável; e só à luz da fé ela se torna apreensível. Em contrapartida, sempre que se pretende reduzir a fé a um qualquer racionalismo naturalista, é-se forçado a eliminar um dos pólos da tensão. Este perigo existiu já quer numa quer noutra das escolas teológicas do sec. V que elaboraram os dois paradigmas cristológicos que referi, paradigmas que se mantiveram ao longo da história da teologia como perspectivas possíveis para se contemplar o mistério de Jesus Cristo. Também hoje, tal como no passado, esta dupla perspectiva teológica se oferece como legítima alternativa, mas também com o perigo de reduzir o significado de Jesus Cristo eliminando quer a densidade da sua realidade humana quer a realidade do seu ser divino.

Num tempo em que ganharam grande importância as possibilidades do conhecimento histórico da figura de Jesus, a tentação mais frequente é querer reduzi-lo apenas à sua realidade humana, a única acessível a um tal tipo de conhecimento. Embora seja inteiramente lícito optar pela perspectiva que parte da realidade humana de Jesus, pretender contudo isolá-la da sua realidade divina já não respeita a verdade do seu mistério. Ora o projecto de Ratzinger consiste precisamente em partir do estudo histórico de Jesus, como a perspectiva que vai mais ao encontro da mentalidade moderna, mas recusando simultaneamente isolar a realidade humana de Jesus da sua realidade divina que só num horizonte de fé se torna apreensível. O seu projecto pretende, precisamente, sublinhar que se não contradiz uma visão de Jesus “a partir de baixo” quando se recusa a tentação de parar a meio do trajecto; mas que, pelo contrário, esse trajecto só tem real validade quando nos conduz à totalidade do mistério de Jesus, à sua plena verdade. É o que afirma, logo no prefácio, com alguma prudência: “Exagerando um pouco, poder-se-á dizer que pretendo encontrar o Jesus real, sendo que é a partir daí que algo como uma ‘cristologia de baixo’ se torna possível.” Para o realizar, tendo sobretudo em conta as insuficiências positivistas da moderna crítica histórica, é necessário insistir num outro tipo de hermenêutica que supõe a fé, como acontece nesta obra de Bento XVI.

H. Noronha Galvão



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