Dossier

Legado europeu do Cristianismo: o debate continua

José Ribeiro e Castro
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José Ribeiro e Castro, Deputado ao Parlamento Europeu

É triste que, na Conferência Inter-governamental (CIG) que acaba de concluir a aprovação do texto do novo Tratado Constitucional da União Europeia, os chefes de Estado e de Governo não se tenham posto de acordo quanto à inclusão no respectivo Preâmbulo de uma referência expressa ao legado do cristianismo, bem presente na história, na cultura e na identidade europeias. Penso que, para esse resultado negativo, contribuiu marcadamente a mudança de posição política da Espanha. Com a vitória de Zapatero nas últimas eleições legislativas espanholas, o governo do país vizinho não só deixou de estar no conjunto de países que, como Portugal, reclamavam essa inclusão, como passou directamente para uma posição secula-rista militante ao lado do radicalismo francês. É evidente que, tendo presente os dados políticos fundamentais da questão, seria sempre muito difícil levar de vencida o obstinado laicis-mo da França e da Bélgica, que representavam a mais forte oposição àquele objectivo. Mas para que se caminhasse no sentido de um patamar de consenso – que, algumas vezes, ainda que de forma muito limitada, pareceu poder ser possível – era indispensável que o bloco de Estados-membros que defendiam a inclusão daquela menção se alargasse ou, ao menos, não recuasse, e que se ampliasse também a simpatia e a margem de manobra junto dos Estados que tinham uma posição mais neutra. A mudança espanhola para o campo secularista, sem estacionar sequer num espaço intermédio de neutralidade, comprometeu ainda mais o quadro político das discussões. Em contrapartida, deve notar-se como facto positivo que foi possível manter o reconhecimento e salvaguarda do estatuto que as Igrejas detenham a nível nacional e, bem assim, do princípio do diálogo das instituições europeias com as Igrejas, como constava do artigo 51º-I do projecto final da Convenção e que alguns, mais radicais, se esforçavam por apagar. E também é verdade que na versão final do Preâmbulo, despido do carácter “pomposo†que o caracterizava quer na forma, quer no conteúdo, no texto resultante da Convenção, é menos gritante a omissão da referência ao cristianismo. Se a proposta final da Convenção já era menos chocante do que a proposta inicial – essa, sim, verdadeiramente intolerável e quase que provocatória -, o texto preambular aprovado, agora, na CIG também é menos polémico: primeiro, pela forma, muito próxima dos preâmbulos tradicionais dos tratados anteriores e mais distante de uma qualquer proclamação fundacional; segundo, pelo seu conteúdo mais enxuto, tornando menos controvertível, nesse contexto preciso, a invocação, agora à cabeça, da “herança cultural, religiosa e humanista da Europaâ€, sem denominar, mas de que se substanciam, em seguida, alguns valores, de que o primeiro invocado é justamente um dos emblemas principais do legado do cristianismo: “os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humanaâ€. Por isso, sem prejuízo do debate geral a travar, no quadro do processo de ratificação – e, esperemos, dos referendos –, já no conhecimento integral de todo o texto do Tratado Constitucional, o resultado do longo debate travado a este respeito não é completamente negativo. E o resultado teria sido certamente muito negativo, se não tivesse havido uma persistente afirmação de valores a partir da base, se a voz do Santo Padre não se tivesse exprimido tantas vezes e se alguns Estados-membros – entre os quais Portugal – não tivessem sido intérpretes claros de uma visão não laicista, não secularista da Europa. Contudo, ficam algumas questões. De que referirei três. Primeiro, é sabido que um milhão e 66 mil cidadãos europeus – entre os quais 75 mil portugueses – assinaram uma petição europeia, em que era pedido o reconhecimento expresso do legado do Cristianismo, e que a essa petição aderiram também ONGs, que o fizeram em representação de 55 milhões dos seus membros. E não houve nada de parecido em sentido diferente. Ora, a questão que se põe, face à evolução da questão e ao resultado final, é se estes cidadãos estão, ou não, bem representados no sistema político europeu e se este os ouve, ou não, convenientemente. Segundo, independentemente de o resultado final se poder considerar mais “equilibrado†do que “desequilibradoâ€, não se pode ignorar que a oposição – e uma oposição obstinada – àquilo que não seria mais do que o reconhecimento simples da verdade da História proveio das correntes laicistas de matriz francesa. Ora, esse é um perigo que continua aí, alimentado por aqueles que confundem laicidade com laicismo e que promovem activamente o secularismo como nova imposição estatal ao espírito das sociedades, das gentes e das pessoas. Essa doença do pensamento laico pode esconder uma nova ameaça totalitária, suprimindo o religioso do espaço público e empurrando-o para a esfera do privado, como que o confinando aos salões e aos lares de regresso às catacumbas – envergonhando e condicionando os que têm fé antes de os excluir ou perseguir. Tal como vimos na incrível legislação a propósito do véu islâmico, o laicismo presta-se a ser inclusive um novo albergue do racismo e da xenofobia, um racismo de Estado, um racismo chique, um racismo pós-moderno, uma xenofobia dita de “libertaçãoâ€. Essa doença do pensamento laico, filha da intolerância e do preconceito, merece ser debatida e enfrentada. Nas suas causas e nas suas conclusões. É que, nos nossos dias, essa doença do pensamento laico é, a par do terrorismo, uma das maiores ameaças à liberdade em solo europeu, podendo pôr totalmente em causa a liberdade religiosa dos cidadãos comuns. Terceiro, toda a evolução do debate à volta destes problemas pôs de novo em evidência uma outra necessidade geral: a necessidade de um renascimento espiritual na Europa. Já se sabia; ficou uma vez mais a claro. Esse – o do renascim-ento espiritual europeu, forte nas suas raízes cristãs – constitui um dos desafios fundamentais das próximas décadas. Um desafio essencial para a própria Europa: uma Europa de espírito fraco seria uma Europa nula, uma Europa frágil, uma Europa de vazio. Em suma: sobre o legado do Cristianismo na construção europeia moderna, o debate apenas começou. José Ribeiro e Castro, Deputado ao Parlamento Europeu


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