Dossier

Memórias do Concílio Vaticano II

D. Manuel de Almeida Trindade
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Pedem-me umas breves linhas sobre o Concílio Vaticano II. Faço-o, começando por anotar que, 62 anos antes, se tinha realizado o Concílio Vaticano I. Estava-se no tempo de Pio IX. Este Concílio durou apenas três meses, durante o Verão de 1870. Porque, no dia 20 de Setembro desse ano, as tropas italianas invadiram Roma. Esta cidade que, durante séculos, pertenceu à Santa Sé, passou a pertencer ao Rei de Itália. O Papa deixou o Quirinal e teve de refugiar-se no Vaticano. Muita gente pensou ter sido uma tragédia. Pelo contrário - podemos agora dizê-lo - foi uma bênção de Deus! Sucederam a Pio IX os seguintes Papas: Leão XIII, Pio X, Bento XV, Pio XI e Pio XII. Estes dois últimos Papas pensaram em convocar um Concílio. Todavia as circunstâncias históricas - de modo particular as duas guerras mundiais, a primeira de 1914 a 1918, a segunda de 1939 a 1945 - não permitiram que se realizasse o projecto do Papa. Após a morte de Pio XII, em 1958, foi eleito Papa Ângelo Roncalli, que tomou o nome de João XXIII. Apesar da idade avançada - tinha 78 anos - três meses depois de ter assumido as suas funções, resolveu convocar um Concílio. Dessa decisão poucas pessoas tiveram conhecimento, mas, logo que ela foi conhecida, não faltaram aplausos ao Papa pela sua coragem. O Concílio iniciou-se no dia 11 de Outubro de 1962. Os dias anteriores foram passados na redacção dos projectos dos textos conciliares, feito por um grupo de bispos assistidos por peritos em assuntos relacionados com o tema em causa. Esses peritos - cerca de quinhentos - acompanharam depois os debates conciliares. É evidente que não tinham palavra na aula conciliar, mas estiveram na redacção dos textos e ajudaram os Bispos na elaboração das intervenções a que só estes tinham direito. Os bispos que tomaram parte no Concílio eram cerca de dois mil e duzentos; no encerramento do Vaticano II eram 2391. Entre estes estavam 50 bispos portugueses (da Metrópole e das Colónias, como então se dizia). Destes 50 estão vivos apenas 9. Havia Comissões Episcopais constituídas por 25 membros, 16 deles designados por eleição de bispos e 9 por designação do Papa. Aos Bispos de Portugal coube pertencerem a três dessas comissões. E só D. Manuel Trindade Salgueiro foi eleito pelos outros bispos; os restantes membros (D. Manuel Gonçalves Cerejeira e D. Ernesto Sena de Oliveira) por escolha do Papa. O Concílio começou por um cortejo que, partindo dos Museus do Vaticano e passando pela Praça de São Pedro, entrava na Basílica do mesmo nome. Os bispos levavam capa de asperges e mitra na cabeça. Esta só para os que já tivessem recebido a ordenação episcopal. Eu, que tinha sido eleito três semanas antes e não tinha sido ordenado bispo, fui “condenado!”, com mais três colegas a, em vez de mitra, levarmos na cabeça barrete vermelho! As televisões focaram esta excepção. O Papa João XXIII, dados os costumes da época, levou tiara na cabeça e - dado o seu estado de saúde - ia sentado na sede gestatória. Na Cátedra, por cima do túmulo de São Pedro, o Papa fez um discurso introdutório. Não vou repeti-lo aqui. Fixarei, apenas, a palavra chave de todo o Concílio: “aggiornamento”. João XXIII tinha dado o mote. Pensava-se que, em três meses, se resolveriam os trabalhos do Concílio. Ora aconteceu que, no final da primeira sessão, dos 72 documentos propostos nem um sequer tinha sido aprovado! João XXIII morreu meses depois, em 3 de Junho de 1963. Mas a Providência divina tinha prevista a solução. Em Milão estava alguém (Montini) que, se fosse Papa, não teria convocado o Concílio, não tinha condão para isso. Mas logo que João XXIII decidiu a realização do Concílio e chegaram às mãos dos bispos os projectos dos textos conciliares, o Cardeal Montini deu conta de que, nesses projectos, faltava um texto orgânico a ligá-los entre si. E, em carta dirigida ao Papa, oito dias depois do início do Concílio, dizia o seguinte: “Parece-me que o Concílio não tem um plano de trabalho preestabelecido”. Para Montini o Concílio devia ocupar-se de um único problema: “A Igreja”. Tinha-se encontrado o caminho do Concílio. Se, para João XXIII o problema estava no “aggiornamento” da Igreja, para Paulo VI o problema central estava em reflectir sobre a essência da Igreja. O projecto conciliar, de 72 documentos passa para 16, deixando aspectos secundários para intervenções futuras do Papa e das Congregações Pontifícias. Entre esses 16 a Igreja ocupa o lugar central. Pareceu-me sempre que os 16 documentos conciliares se podem comparar a uma árvore: uma árvore tem tronco, raízes, seiva e casca. Aqui temos a imagem das quatro Constituições: o tronco é a Igreja na sua constituição essencial: Luz das gentes. As raízes são a Sagrada Escritura - fonte constitutiva - e as tradições - fonte interpretativa: A Divina Revelação. A seiva é a Oração (de modo particular a Liturgia) que mantém vivo o tronco: O Sagrado Concílio. A casca é o contacto da Igreja com o mundo, do qual ela deve constituir a Alegria e a Esperança. Os nove Decretos tratam de assuntos importantes mas que não são fundamentais: são, de algum modo, o resultado das Constituições. Das redacções dos documentos teve particular relevo (e trabalho!) a redacção sobre a Liberdade Religiosa, dado o sentido que a palavra teve ao longo de séculos, sobretudo a partir do Syllabus de Pio IX, cuja interpretação provocou certa celeuma. Sobre o tema interveio o bispo de Orléans, D. Felix Dupanloup, num livro que recebeu o aplauso de centenas de bispos e do próprio Papa Pio IX. O tema, como se vê, não era fácil. Daí o tempo que o texto conciliar levou a ser emendado e, finalmente, (no encerramento do Concílio) aprovado. Termino estas linhas com uma palavra de gratidão. Quando penso que, entre o Vaticano I e o Vaticano II, houve milhares de bispos que nunca participaram num Concílio, eu tive a sorte - diria a Graça - de participar no Vaticano II. Estou grato à divina Providência! D. Manuel de Almeida Trindade Bispo Emérito de Aveiro


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