Dossier

Migrantes entre barreiras

Pe. Rui Pedro
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Rui Pedro, Director da Obra Católica Portuguesa de Migrações

Existe na Igreja um punhado de cristãos constituído por alguns leigos, bispos, padres e religiosas que, desde a maciça e desesperada chegada dos “refugiados ultramarinos†(Nota Pastoral da CEP, 1975), e vulgarmente designados de “retornados†e “deslocadosâ€, se encontra responsavelmente, e sem preconceitos, comprometido com a mobilidade humana no país e fora dele. Com efeito, essa vaga imigratória de proporções nunca vistas e na ordem das 800.000 pessoas, foi a primeira da nossa história e é comparável somente ao “forçado†êxodo emigratório dos portugueses para o estrangeiro da década anterior que se salda em perto de um milhão de pessoas. A mobilidade sempre fez parte da nossa história secular. Não nos auto-compreendemos sem ela! 2. Com a última vaga, a terceira, a mais recente, iniciada em vésperas do Jubileu 2000, capitalizando até hoje um total de 200.000 imigrantes, o País parece ter apanhado um grande susto. Inebriado e amedrontado com o seu novo “estilo de vida†onde os sinais de ostentação de “sucesso†de uns ocultam sistematicamente a miséria de outros, e ainda contagiado inocente e perifericamente pela preocupante “xenofobia ao estrangeiro imigrante e refugiado†em voga nas nações ricas da União Europeia, o País parece ter entrado, de novo, em desnorte civilizacional: mais de valores do que propriamente económico. Outrora devido ao trauma “pós-colonialâ€, mas agora causado pelas consequências da adesão à União e aos sucessivos alargamentos geo-estratégicos passados e futuros. Num curto espaço de tempo, intensificam-se as chegadas, e a imigração torna-se um fenómeno inevitável e imparável. Tal como aconteceu com a Emigração, a Imigração adquire também o “estatuto†de realidade estrutural e estruturante da nossa sociedade. Habituados ao lento processo da anterior vaga imigratória, a segunda, maioritariamente africana e lusófona, que sustentou as últimas duas décadas do milénio, sentimos diminuir o número de cristãos fiéis à vivência da “caridade evangélica†com os migrantes e para com os ainda olvidados refugiados. Incapazes de propor medidas adequadas de integração social e eclesial, íamo-nos habituando à omissão, ao que se devia ter feito e não se fez. Mas o punhado de cristãos, juntamente com activistas dos direitos humanos, o ACIME, a OIM, Associações de imigrantes e as Plataformas SCAL e CAPROL, conscientes dos seus deveres baptismais e cívicos, gritava teimosamente no deserto da indiferença política, a dignidade humana e “acolhimento generoso†como quem vive de utopia... É visível como também no próprio seio da Igreja a imigração permanece ainda um tema de difícil consenso pois subsistem leituras diferentes, às vezes contrapostas, da mesma realidade. Apesar de hoje se apresentar como um tema menos marginal a Imigração exige, cada vez mais, por parte das Instituições da Igreja um urgente e aprofundado estudo sociológico e pastoral que consiga accionar um concertado plano pedagógico nacional que favoreça uma “cultura do acolhimento e da comunicação†e o tão almejado pelo Papa, diálogo intercultural e inter-religioso junto das comunidades cristãs: paróquias, congregações e movimentos. 3. Temos a clara consciência de que neste particular momento político e social de “crise de valores†onde vai predominando alguma subtil demagogia de todos os quadrantes apoiada por uma nova “lei de imigração†mais securitária e sancionatória que a anterior, restritiva dos direitos, violenta administrativamente, que ignora a situação dos imigrantes “não autorizados†que estão em Portugal, e deixa mais uma vez no limbo a situação dos refugiados, não podemos deixar de ser a voz vulnerável dos “não autorizados†que vivendo “oprimidos†no meio de nós, trabalham mais que os outros e recebem menos; contribuem para a Segurança Social e permanecem desprotegidos; participam nas Associações e nas nossas Igrejas com empenho; e esperam, como agora se diz, deste país “pequeno e sem condições para acolher mais gente†e sem condições para controlar a sua fronteira e modernizar a sua rede consular, a tão proclama resposta humanista, generosa e de justa inclusão. Conhecemo-los, a maioria é gente de bem e de paz e acreditamos que muitos são precisos aqui para nos ajudar a atingir o progresso económico, social, científico, religioso, democrático e civilizacional que sem eles não se conseguirá. Eles são um dom inestimável para a paz e progresso da democracia. 4. A nosso ver, os cristãos continuam, mais a nível da acção do que da reflexão, a participar no complexo processo de acolhimento que as sucessivas categorias de deslocados, refugiados, imigrantes, doentes, reclusos e estudantes estrangeiros requerem da sociedade e à Igreja. Entre os laicos é cada vez mais frequente assistir ao elogio da Igreja como “pioneira†na resposta ao acolhimento! A verdade é para ser dita! Com efeito, é preciso ir mais além! A nível da acção social a resposta dos cristãos tem-se caracterizado muito pela dispersão de recursos, caridade espontânea e pouco organizada, um certo assistencialismo e paternalismo cultural. Fomos “pioneiros†no primeiro acolhimento: de emergência, imediato, de resposta ao que nos é pedido, mas chegou a hora de também o ser na segunda fase do acolher. Esta nova fase apresenta-se mais exigente pois pede uma leitura providencial da mobilidade à luz dos direitos humanos, uma firme postura na denúncia das ilegalidades e do tráfico de pessoas, uma especialização pastoral e técnica, requer formação bíblica e teológica sólida, sustentem-se como uma espiritualidade laical e obriga a uma grande capacidade de diálogo com a laicidade, com a sociedade civil e outras religiões. Por fim, espera uma vivência da fé que faz dos migrantes e refugiados sujeitos, sinal dos tempos, e não objecto. Uma “caridade de proposta†que não responde apenas com o coração a transbordar de “compaixão†às necessidades concretas das pessoas, mas que lhes aponta “caminhos de razãoâ€, sendas de integração, de prática dos direitos e deveres, e que constrói uma “sociedade integrada†que a todos integra, acolhe, promove e distribui universalmente bem-estar e partilha os bens necessários para que a ninguém falte o pão, a saúde, o salário justo, a casa, os direitos, a paz e o carinho do Deus que “acampa†no meio de nós. Ele quer ser amado e servido no pobre. Ele revela-nos que “há mais alegria no dar do que no receber†quando alguém se compromete com os pobres. E, a caridade cristã olha à vulnerabilidade, não à nacionalidade! Por isso, a caridade cristã não pode ter fronteiras. É chamada pelas obras, e não apenas por palavras, a derrubar no silêncio dos pequenos gestos generosos do dia a dia as barreiras que muitos, hoje, pretendem erguer impedindo assim a fraternidade.


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