Por muito individualistas ou egoístas que possamos ser, estamos condenados a viver com os outros e a necessitar deles. É da condição humana. A interdependência que marca, indelevelmente, o nosso relacionamento em sociedade, faz-nos tomar profunda consciência dos nossos deveres de fraternidade, ajudando-nos a melhor nos identificarmos com o outro e a doarmo-nos, totalmente, a quem de nós precisa.
É na radicalidade desta consciência de seres interdependentes que nos descobrimos e reconhecemos irmãos uns dos outros, porque filhos do mesmo Deus, tenha Ele o nome que tiver.
Esta outra realidade, do plano da fé, é explicitada na História, pela encarnação do próprio Deus, que em Jesus Cristo se fez homem e nosso irmão por excelência.
Ser cristão e membro da Igreja Católica é, por isso, ser chamado a assumir, até às últimas consequências, esta exigência de abertura ao outro e a vivência em espírito de universalidade plena. Tanto mais que faz parte da missão evangelizadora da Igreja testemunhar Jesus Cristo e o seu Projecto de Salvação para toda a Humanidade. Projecto este que atingiu o cume na dádiva plena da própria vida, porque “ não há maior prova de amor do que dar a vida...”, gerando, assim, mais vida. À Igreja pede-se que desperte e mantenha viva a consciência de todos os seus filhos, e demais mulheres e homens de boa vontade, para que este “fazer da vida um dom” não se limite ao cumprimento de rituais, limitados no tempo, nem seja apenas reacção emotiva perante acontecimentos trágicos, mas que permaneça, no nosso quotidiano, como o ar que respiramos, fazendo da construção da justiça e da solidariedade uma verdadeira cultura. Ou seja, fazer deste valor humano um imperativo de vida que, como diz João Paulo II, “não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum...” (SRS 38).
Todavia, perante situações de maior contingência humana, sejam do domínio material, sejam do domínio espiritual, este valor humano e cristão emerge espontaneamente.
E é isso que está a acontecer no País. Não é necessário qualificar a tragédia que se abateu sobre o nosso mundo, em particular sobre alguns países do Sudeste Asiático. Ela foi bastante explícita na sua agressividade para despertar a consciência solidária dos povos, entre os quais o português, que está a dar, uma vez mais, um testemunho de grande eloquência.
E, se é verdade que os “media” têm uma parte da responsabilidade substancial nesta motivação, cada uma das Igrejas Particulares de Portugal, por via da palavra dos seus Pastores, acolheu, com prontidão, o apelo do sofrimento de milhões de seres seus irmãos. Nós, os cristãos, nem precisaríamos de ser motivados, porque sabemos que, por exigência dos compromissos do nosso baptismo, estamos a cumprir um dos deveres inerentes à nossa condição fraterna. Sabemos, também, que, ao compadecermo-nos da dor dos outros, estamos a responder, de forma afirmativa e responsável, à pergunta que, constantemente, Deus nos continua a fazer, como outrora a fez a Caim: “Onde está teu irmão? (...) Que fizeste! Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar para mim! ” ( Gn 4, 9-10).
A Igreja em Portugal, através dos seus Pastores e de alguns dos seus serviços e instituições aos quais se pede maior responsabilidade nestas circunstâncias, está a mostrar à sociedade portuguesa, com esta sua atitude solidária - explicitada na partilha de bens e nas preces por todas as vítimas -, o verdadeiro rosto de Deus, que é Pai amoroso e rico de misericórdia.
A Igreja tem consciência que deve, em primeiro lugar, assumir-se como educadora para a justiça e a solidariedade de todos os que a ela pertencem, mas também não descura as suas responsabilidades no contributo que deve dar na formação da consciência solidária de toda a sociedade. E, aqui, radica a preocupação “do juntar as mãos” com todos aqueles que, representando organizações da sociedade civil, ou do próprio Estado, estão empenhados, de coração sincero, nesta e noutras causas.
E para que este nosso testemunho possa ser verdadeiro e coerente, não devemos deixar esmorecer esta corrente de solidariedade, quando as televisões as rádios e os jornais deixarem de falar dos dramas que esta tragédia originou - ou de outros que nem sequer chegam a noticiar - mas continuar a alimentá-la, a fim de que se torne tão forte como um tsunami e inunde todos os corações, devastando todo o género de injustiças e egoísmos. E nós, os cristãos, não esqueçamos que, ao agirmos assim, só estamos a cumprir a mais perfeita e ÚNICA lei que nos foi deixada por Jesus: “ Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu entendimento; e a teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10, 27). Só, desta forma, reconhecerão que somos Seus discípulos.
Eugénio Fonseca
Presidente da Caritas Portuguesa