Dossier

Na verdade, a paz – esperança e compromisso

Manuela Silva
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Manuela Silva, Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz

O Papa Bento XVI acaba de dar a conhecer a sua Mensagem para a celebração do próximo Dia Mundial da Paz de 2006, dando assim continuidade à tradição dos seus predecessores Paulo VI e João Paulo II. A mensagem é apresentada com o título sugestivo: “Na Verdade, a Paz”. A escolha do tema de reflexão proposto assenta numa convicção profunda que o Papa exprime nestes termos: “sempre que o homem se deixa iluminar pelo esplendor da verdade, empreende quase naturalmente o caminho da paz” . Desejar, procurar e praticar a verdade, na nossa vida pessoal como nas nossas relações sociais ou nas múltiplas instituições cívicas e políticas com que se tece a vida colectiva nas nossas sociedades, é, assim, um primeiro desafio incontornável para quantos se dizem amantes da paz. E todos desejamos a paz, porque esse bem supremo está de algum modo inscrito no mais profundo do nosso ser; é seu elemento constitutivo. Se derivas existem – e tragicamente as conhecemos – sentimo-lo como mal, como ruptura de humanidade. A ausência de paz é uma infelicidade. Mas, se todos desejamos a paz, são muitos os obstáculos que contra ela erguemos, todos os dias e a todos os níveis, no plano pessoal como colectivo, no interior das famílias, nos meios de trabalho, na política ou nas relações internacionais. A paz é dom de Deus, mas é também construção humana; por isso é tão importante que nos detenhamos a reflectir sobre os bloqueios da paz e sobre os caminhos que devemos percorrer para a tornar possível, aqui e agora. Olhando para o Mundo em que vivemos, temos razões de sobra para nos preocuparmos com os sinais de ausência de paz. À escala mundial, têm diminuído os conflitos declarados entre os diferentes territórios, mas continuam a existir guerras que parecem eternizar-se, destruindo vidas humanas e consumindo recursos materiais que impedem o desenvolvimento das populações que são vítimas desses conflitos. Como não lembrar a guerra no Iraque, que já dura há quase três anos e é um trágico exemplo da falta de verdade na busca da paz? Declarada com base em falsas razões, já provocou mais de trinta mil vítimas e não se avista o seu termo. Têm sido muitas as vozes que se ergueram para denunciar a falta de legitimidade deste conflito, mas essas vozes não foram ouvidas por quem detinha a força para fazer a guerra. Agora, começam os seus responsáveis a reconhecer as faltas contra a verdade que esteve na génese do conflito, mas continua a ser manifesto o défice de verdade na busca das soluções para pôr termo a este sangrento conflito. Este é, apenas, um exemplo, entre outros, de conflitos bélicos. Lembremos os povos do Afeganistão, da Palestina e Israel, dos Balcãs e tantos outros. Para além das vítimas humanas que lhes estão associadas, não podemos ignorar que as despesas militares nos últimos anos têm aumentado dramaticamente, com as suas previsíveis consequências em termos de menos recursos disponíveis para a educação e a saúde, ou a ajuda ao desenvolvimento dos países emergentes. Para além desta face mais visível dos conflitos armados, as sociedades contemporâneas conhecem, hoje, uma nova manifestação de conflito – o terrorismo, que, desde 2001, vem assumindo proporções preocupantes. Não à maneira convencional, mas de guerra se trata, com a agravante de não ter lugar certo, nem alvo preciso. O terrorismo faz as suas vítimas entre as populações civis e com critérios erráticos quanto ao lugar, dia e hora. É uma mentira insidiosa que perpassa por entre as malhas da convivência democrática e, por isso, reveste particular perigosidade. Traduz desprezo pela vida humana (simultaneamente, dos actores dos actos terroristas e das suas vítimas) e induz os governos à adopção de medidas de segurança e prevenção que facilmente poderão levar à colisão com direitos de cidadania e pôr em risco padrões de liberdade já alcançados. Uma terceira ameaça à paz mundial vem do armamento nuclear com que pretendem dotar-se alguns países e à recusa de controlo supra-mundial deste tipo de armamento. Também deste ponto de vista, é com sobressalto que entraremos em 2006. A este propósito, o Papa coloca-se do lado de inúmeras pessoas de boa vontade para afirmar que a perspectiva de contar com as armas nucleares é “falaz. Numa guerra nuclear, não haveria realmente vencedores, mas apenas vítimas além de funesta, totalmente”. E vai mais longe, dizendo: “A verdade da paz requer que todos - tanto os governos que de forma explícita ou tácita possuem armas nucleares, como os que pretendem consegui-las – invertam conjuntamente a marcha mediante opções claras e decididas, orientando-se para um progressivo e concordado desarmamento nuclear.” A paz não se constrói apenas com a oposição às guerras e à sua parafernália. Desde sempre, a doutrina social da Igreja vem insistindo que a paz se constrói com base na justiça, na liberdade, e no amor, para além da verdade, que é o tema específico desta Mensagem de 2006. A globalização desregulada da economia a que estamos a assistir, a par da concentração de poder económico e político, está na origem de novas formas de exploração do trabalho humano, de pobreza e exclusão social, dando lugar a um compreensível e expectável avolumar de tensões e de anomia social, que assumem particular relevância em vastas regiões do Mundo, sem esquecer as zonas periféricas das grandes cidades da Europa ou dos Estados Unidos. No primeiro caso, a injustiça toma o rosto da fome, da morte prematura, da falta de condições básicas de habitabilidade, e demais nomes da grande pobreza; no segundo caso, sobressai a situação de desemprego e precariedade no trabalho, a falta de horizonte de futuro para as gerações mais jovens, o enfraquecimento dos laços de solidariedade, a desmotivação da participação na vida cívica a par do enfraquecimento do sentido de pertença colectiva, situações que, nos casos dos países ricos, não encontram justificação na carência de bens materiais mas na falta de equidade com que aqueles são repartidos. Há que olhar com a devida atenção para estas situações, pois, além do sofrimento que acarretam para as pessoas que as vivem, constituem uma bomba relógio pronta a eclodir quando menos se esperar, como tivemos exemplo nos recentes acontecimentos em França e, em menor escala, em outras cidades do centro da Europa. Portugal não é excepção. Também estes problemas nos tocam directa e indirectamente. Neste tempo litúrgico, em que contemplamos o nascimento de Jesus, o Príncipe da paz, deixemo-nos interpelar pela Igreja que, pela voz do seu Pastor, nos lembra que: “a paz, para ser autêntica e duradoura, deve ser construída sobre a rocha da verdade de Deus e da verdade do homem. Só esta verdade pode sensibilizar os ânimos para a justiça, abri-los ao amor e à solidariedade, encorajar a todos a trabalharem por uma humanidade livre e solidária. Sim, apenas sobre a verdade de Deus e do homem assentam os alicerces de uma paz autêntica.”


Dia Mundial da Paz