Natal canónico e apócrifo
O nascimento de Jesus na literatura religiosa
Desde S. Francisco de Assis, o presépio inscreve-se na história da humanidade. Resume o espírito do Natal de Jesus, a festa de um nascimento que contém o mistério da encarnação de Deus num ser humano e desvela d’Ele uma nova imagem. Foi-se inculturando no imaginário cultural e religioso dos povos que o construíam. A literatura religiosa, olhar feliz da alma pura, luz do pensamento poético e expiração do coração inspirado, fornecia-lhe figuras, ao mesmo tempo que dava corpo à Beleza encarnada por meio de palavras cheias de amor não contido e de esperança no definitivo. Foi a exteriorização da interior contemplação da suma Beleza incarnada num Menino. Um soneto de Luís de Camões declama o enriquecimento da humanidade, ao Deus desposar a pobreza humana:
Dos céus à terra desce a mor Beleza,
Une-se à nossa carne e fá-la nobre;
E sendo a humanidade dantes pobre,
Hoje subida fica à mor alteza.
Busca o Senhor mais rico a mor pobreza;
Que a o mundo o seu amor descobre,
De palhas vis o corpo tenro cobre,
E por elas o mesmo céu despreza.
Como? Deus em pobreza à terra desce.
O que é mais pobre tanto lhe contenta
Que este somente rico lhe parece.
Pobreza este presépio representa;
Mas tanto por ser pobre já merece
Que quanto mais o é, mais lhe contenta.
Ao longo de séculos, corações crentes abismados na meditação transbordaram de poesia, prosa, hinos, oração, loas, vilancicos, enaltecendo o imenso mistério da Palavra encarnada que mal cabia em palavras humanas. Desde os primeiros Padres da Igreja aos monges da Idade Média, de Teresa de Jesus a Teresa do Menino Jesus, de Frei Agostinho da Cruz a Afonso Maria de Ligório e a Ana Catarina Emmerich, de Gil Vicente a José Régio, a literatura religiosa serviu de caixa de ressonância à vitalidade da fé no mistério que o Natal de Jesus velava.
De entre a exuberante e mais antiga literatura religiosa que cantou o nascimento de Jesus, distinguem-se os livros apócrifos, que influenciaram a expressão literária de sucessivos escritores, poetas, dramaturgos na tradição cristã. Apesar de excluídos do cânone bíblico por serem simples reinterpretações e amplificações tardias de textos canónicos ou por darem largas à ingenuidade e à fantasia religiosas ou por conterem desvios da fé mais pura, muitos apócrifos cristãos, escritos com recta intenção, contêm sãs expressões da fé, como a virgindade de Maria e a concepção virginal de Jesus. Reflectem intensa piedade popular e propunham-se preencher lacunas sobre momentos da vida de Jesus que os evangelhos canónicos deixam na penumbra ou omitem. Os fenómenos acontecidos na altura do seu nascimento fascinaram a literatura apócrifa entre os fins do séc. I e o séc. V.
Assim, enquanto a característica sobriedade dos evangelhos canónicos só afirma que Maria “deu à luz um filho e [José] pôs-lhe o nome de Jesus” (Mt 1,25) e que Maria “teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7), a tradição cristã situa o nascimento numa gruta. Ela vem de vários evangelhos apócrifos. O Livro da Infância do Salvador, dependente do influente Proto-evangelho de Tiago (séc. II), queria pôr em relevo a virgindade de Maria. E conta que, tendo chegado a Belém, José procurou um sítio para ela dar à luz. Viu um estábulo solitário e estabeleceu-se lá. E foi em busca de uma parteira. Chegando à gruta, viu o imenso esplendor. Tendo entrado e verificado a virgindade de Maria, exclamou: “Virgem concebeu, virgem deu à luz e continua virgem”. Entre parênteses, recordamo-nos de que o «Natal de Elvas» fará eco longínquo a esta afirmação:
No seio da Virgem Maria
Encarnou a divina graça;
Entrou e saiu por ela
Como o sol pela vidraça.
A parteira do apócrifo contou a Simão, filho de José, como viu o nascimento de Jesus.
Quando entrei, encontrei [Maria] a olhar para o céu e a falar consigo própria. Penso que estava em oração e bendizia o Altíssimo… Nesse momento parou tudo, em absoluto silêncio e reverência: os ventos deixaram de soprar, nenhuma folha se movia nas árvores, nem se ouvia o murmúrio das águas; os rios ficaram imóveis e o mar sem ondulação… O menino resplandecia como o sol, limpíssimo e agradabilíssimo ao olhar, pois só ele apareceu como paz do universo. Na hora em que nasceu ouviu-se a voz de muitos espíritos invisíveis que diziam à uma: «Ámen». E aquela luz multiplicou-se e escureceu com o seu esplendor o fulgor do sol, enquanto esta gruta foi inundada de intensa claridade e de um aroma suavíssimo… Então enchi-me de coragem: inclinei-me e toquei [no menino], levantei-o nas minhas mãos com grande reverência… Examinei-o e vi que não estava minimamente manchado; todo o seu corpo era limpo, como o orvalho do Deus Altíssimo… Estando eu admirada ao ver que não chorava como costumam os recém-nascidos e tendo o olhar fixo nele, dirigiu-me um sorriso jucundíssimo; depois, abrindo os olhos, fixou em mim um olhar penetrante e subitamente saiu dos seus olhos uma brilhante luz como a de um relâmpago (62-76).
Segundo o Evangelho do Pseudo-Mateus, nº 14, o nascimento de Jesus numa gruta contou com a presença do boi e do burro. É desse texto que provém a tradição cristã de os colocar no presépio:
Três dias depois do nascimento do Senhor, Maria saiu da gruta e aposentou-se num estábulo. Foi lá que reclinou o menino num presépio; e o boi e o burro adoraram-no. Então cumpriu-se o que tinha sido anunciado pelo profeta Isaías [1,3]: «o boi conheceu o seu dono e o asno o presépio do seu senhor». Até os próprios animais, entre os quais se encontrava, o adoravam sem cessar. Nisso teve cumprimento o que tinha predito o profeta Habacuc [em 3,2 na tradução grega]: «dar-te-ás a conhecer no meio de dois animais».
Estreitamente associada ao “nascimento de Jesus em Belém” está a narrativa da “chegada a Jerusalém de uns magos vindos do Oriente”, para “adorarem o rei dos judeus que acaba de nascer” (Mt 2,1). Na intenção teológica de Mateus, essa sóbria narração era suficiente para significar que Jesus era luz e salvação para os gentios como para os judeus e que os poderosos tentaram sufocar a voz de Jesus antes de ela poder ser ouvida e poder proclamar a sua «boa nova» libertadora. Mas os apócrifos legaram-nos até aos dias de hoje a tradição com o número e os nomes dos magos e a sua qualificação de reis:
Um anjo do Senhor apressou-se a ir ao país dos persas para prevenir os reis magos e ordenar-lhes que fossem adorar o menino recém-nascido. Estes, depois de viajarem durante nove meses guiados por uma estrela, chegaram ao lugar de destino exactamente no momento em que Maria se tornava mãe… Tendo vindo com armada numerosa, chegaram à cidade de Jerusalém. E os três reis dos mencionados magos eram três irmãos: o primeiro era Melchior, que reinava sobre os persas; o segundo era Gaspar, rei dos indianos; e o terceiro era Baltasar, que dominava sobre o país dos árabes… Acamparam ao redor da cidade e lá permaneceram três dias, eles e os príncipes dos respectivos reinos. Embora sendo todos irmãos, filhos de um único rei, no seu séquito marchavam forças de línguas muito diversas. Melchior, o primeiro rei, é o que tinha trazido mirra, aloés, musselina, púrpura, peças de linho e também livros, escritos e sigilados com o dedo de Deus. O segundo, o rei dos indianos, Gaspar, é o que tinha trazido como dons, em honra do menino, nardo precioso, mirra, canela, cinamomo, incenso e outros perfumes. O terceiro, o rei dos árabes, Baltasar, é o que tinha consigo ouro, prata, pedras preciosas, safiras de grande valor e pérolas apreciadas (Evangelho Arménio da Infância, 5,10 e 11,1-2).
A inspiradora imagética dos apócrifos assegurou-lhes continuada popularidade na literatura religiosa. Tem o mérito de apontar para o mistério que ela canta e a nós encanta, porque “só o mistério nos faz viver, só o mistério” – como diz García Lorca.
Para S. João da Cruz, o mistério do nascimento de Jesus é o ponto culminante do plano de salvação concebido por Deus «no princípio». Poetizou-o em nove cenas no Romance sobre o evangelho «in principio erat Verbum» acerca da Santíssima Trindade. Para a contemplação, deixamos aqui as duas últimas:
Chamou então um arcanjo
Que S. Gabriel se dizia
E enviou-o a uma donzela
Que se chamava Maria,
De cujo consentimento
O mistério se fazia;
Na qual a Suma Trindade
De carne o Verbo vestia.
E embora de três a obra,
Somente num se fazia;
Ficou o Verbo incarnado
Em o ventre de Maria.
E o que tinha apenas Pai,
Também já Mãe possuía.
Porém, não como qualquer
Que de varão concebia,
Porque das entranhas dela
Sua carne Ele recebia;
Pelo qual, Filho de Deus
E do homem se dizia.
Já sendo chegado o tempo
Em que de nascer havia,
Assim como desposado
Do seu tálamo descia,
Abraçado à sua esposa,
Que em seus braços a trazia;
O qual a Mãe graciosa
Em um presépio estendia,
No meio de uns animais
Que na altura ali havia.
Diziam cantos os homens
E os anjos melodia
Festejando os esponsórios
Que entre aqueles dois havia:
Deus, porém, nesse presépio
Ali chorava e gemia,
Que eram jóias que a esposa
Aos esponsórios trazia,
E estava a Mãe assombrada
Da troca que ali se via:
Em Deus o pranto do homem
E no homem a alegria,
Coisa que num e no outro
Tão alheia parecia.
Sobre o Natal de Jesus a literatura religiosa privilegiou as imagens, porque só elas penetram no mistério que, transcendendo-nos, em nós se corporizou. Elas contribuem para construirmos dentro de nós o presépio, de história feito. As suas figuras reais e as pintadas pelo imaginário religioso vêm preencher o vazio de símbolos natalícios na actual ornamentação das nossas cidades e vilas, onde o resplendor das luzes é sedução comercial para ter mais para si, em vez de apelo espiritual para ser melhor para os outros. Continuar a meditar o Natal faz renascer a esperança e não a deixa vazia.
Armindo Vaz, Biblista
Natal