Dossier

Natal: da ficção à realidade

João César das Neves
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Se quisermos saber o que é o Natal, as dificuldades são maiores do que parecem à primeira vista. O Natal é um grande amontoado de (por ordem alfabética) abetos, anjinhos, azevinho, bolas decoradas, bonecos de neve, burros, camelos, carneiros, chupa-chupas, cometas, crianças deitadas na palha, duendes, embrulhos coloridos, estrelas, fritos, grutas, harpas, homens apoiados no bordão, laçarotes, luas, meias penduradas, mulheres ajoelhadas, neve, pastores, reis, renas, sinos, trenós, vacas, etc, etc. Mas na realidade o Natal é a festa da família, a festa da solidariedade e dos presentes, a festa das filhoses, das árvores decoradas, das ruas iluminadas, dos pensamento bonitos. Acima de tudo, o Natal é o reino do Pai Natal, um velho gordo e bondoso, com barbas, sempre carregado com um saco e uma preferência declarada por chaminés. Por isto, muitos cristãos ficam ofendidos com a profusão de símbolos díspares e interpretações laicas. Outros entristecem-se com a falta de atenção ao mistério central do Natal. Na realidade, no meio desta enorme confusão, alguns são capazes de conhecer o sentido original do Natal. Tal como nas palavras complicadas ou nos hábitos antigos, algumas pessoas ainda conhecem a sua origem histórica, etimológica. Há quem se lembre porque razão é que nesta quadra toda a gente anda bem disposta, se esforça por ser simpática e partilhar coisas com amigos e estranhos. Porque na realidade o Natal é outra coisa. Algumas reportagens mais informadas são capazes de dizer que o Natal é a festa do nascimento de Jesus Cristo, o fundador da religião cristã. Alguns até são capazes de saber que a criança deitada nas palhas é o próprio Jesus, que a mulher de joelhos é Maria, sua mãe, e o homem apoiado no bordão José, o marido dela. Podem chegar a dizer que o burro trouxe a mãe e o Menino, por nascer, de Nazaré até à gruta da vaca, que fica em Belém. E até podem informar que o Menino foi saudado por uma estrela, pastores, anjos, reis e camelos. Quanto aos outros emblemas, eles vieram de fontes variadas e posteriores, mais difíceis de identificar. A realidade, de facto, é outra. As coisas, no fundo, são bastante diferentes. Entre nós, mesmo que o tentem esconder, toda a gente sabe perfeitamente que o Natal é a festa do nascimento de Jesus. Podem fingir ignorar, podem encher o seu tempo com outras coisas. Mas a verdade é que ninguém desconhece a suprema provocação da presença desse Menino. Não faltam os que querem estilizar, espiritualizar, conceptualizar e mitificar o Natal. Mas mesmo esses não podem impedir a presença perturbadora dessa criança de braços nus e abertos, sorrindo no meio das palhas. Realmente, o Menino de Belém será este ano, mais uma vez, a presença mais global de todas. Pode o Pai Natal tentar abafá-lo atrás do seu enorme corpanzil vermelho. Pode ficar tapado pela silhueta da Coca-Cola, a concha da Shell ou os arcos do McDonald’s. Pode ter menos popularidade que o Mickey Mouse, o Harry Potter ou o Homem-aranha. Mas não é possível ignorá-lo. Num canto inesperado da sala, ao dobrar de uma esquina, numa montra entre tantas, lá aparece essa presença perturbante. Perturbante porque, por muito que se tente esquecer, sabe-se bem que esse sorriso atravessa todo o nosso ser. A realidade? Essa é que, quer queira quer não, o mundo está posto perante o Presépio. O mundo pode trazer auscultadores e óculos escuros, pode remexer em sacos de plástico e conversar sobre outros assuntos. Mas este ano, mais uma vez, o mundo vai ser colocado diante da insólita cena do Presépio. Por muito que queira fugir, disfarçar, distrair-se, o Natal vem ter com ele. O mundo não consegue fugir da presença provocadora do Presépio, da verdade inesperada do Natal. Quando, na realidade, olhamos para o Presépio, muitos sentimentos nos assaltam. Os cristãos, que chamam a atenção do mundo para o Natal, querem que todos vejam algumas coisas fundamentais. Primeiro, a beleza da cena. É tão encantador olhar a criancinha deitada nas palhinhas, entre o burro e a vaca, com uma mãe que não se cansa de estar de joelhos a olhá-lo. Depois a pobreza de toda a imagem. Foi na miséria de uma gruta que o Menino teve de nascer, para nos ensinar a olhar para os pobres e a desprezar as riquezas. Finalmente, a solidariedade dos pastores e dos magos chama-nos a ser amigos dos outros, a amarmos o próximo, a família. Se é assim, a realidade cristã do Natal, afinal, não é assim tão diferente. Não há grande distância entre o que diz o mundo e o que dizem os cristãos. Invocando o Pai Natal ou o Menino Jesus, com árvores decoradas ou grutas com palha, com bonecos de neve ou estrelas cadentes, com trenós ou reis magos, o que é facto é que todos defendem um clima de amizade, partilha e bondade. Pode haver hipocrisia dos dois lados. Mas se a realidade do Natal é só isto, no Presépio ou no centro comercial, todos estamos de acordo. Só que a realidade do Natal é tão diferente! A verdadeira realidade do Natal é um espanto inaudito. A verdade do Presépio é um facto inexplicável. A presença do Natal é uma ideia incompreensível. Que o Deus que não cabe nos céus, que o Senhor que fez todo o universo, que a Verdade que ilumina toda a realidade tenha nascido como um Menino, viva connosco vários anos, para morrer na Cruz e ressuscitar, essa é a realidade que elimina toda a ficção. Que o tenha feito por mim, pela minha vida é a realidade incontornável. O nascimento de Cristo é a realidade que muda toda a minha existência quotidiana. Ao lado disto, tudo o resto é imagem passageira, aparência fugaz, fantasia patética. No meio de tanta ficção, A ÚNICA , MESMO A ÚNICA REALIDADE DO NATAL É A MISSA DO GALO. João César das Neves Professor de Economia da UCP


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