Natal entre resÃduos
Como é sabido, a celebração do Natal, precisamente na data que lhe conhecemos, resulta da cristianização de uma festa pagã, o dia do nascimento do sol ou do solstício de Inverno. O significado dessa cristianização está ligado, entre outros aspectos, ao facto de que o cristianismo implica, em geral, a superação do paganismo, mesmo que possa manter muitos dos seus hábitos exteriores e rituais. E essa superação significa a superação da divinização de realidades imanentes ao nosso mundo, sejam elas realidades naturais e cósmicas (como era o caso do sol), sejam realidades humanas ou produtos dos humanos.
Ora, por mais estranho que pareça, a nossa época estará a inverter o processo: da despaganização do natal, pela sua cristianização, assiste-se agora a uma espécie de repaganização, pela sua descristianização. De facto, as forças divinizadas em torno do natal já pouco têm a ver com o Deus de Jesus Cristo, o Verbo feito carne, sendo essencialmente forças ligadas ao sistema de consumo.
Mas, assim como a cristianização do rito pagão manteve certas práticas, dando-lhes significado cristão, também agora a repaganização mantém vestígios do cristianismo, embora nem sempre mantenha a sua dimensão explicitamente cristã. Vivemos, portanto, um Natal entre resíduos – resíduos de cristianismo, que nem sempre se encontram facilmente; resíduos de paganismo que, estando encobertos, são cada vez mais fortes; e resíduos do próprio consumo, pois esse é o modo do seu funcionamento: a produção permanente de resíduos...
Os vestígios de cristianismo no Natal actual encontram-se, de modo explícito, ainda em algumas das suas manifestações: missas de Natal para quem nunca vai à missa ao longo do ano; canções de Natal, com textos ainda cristãos; presépios com a família de Nazaré, etc. Mas, temos que admiti-lo, muitas dessas manifestações exteriores estão já tomadas pelo sistema consumista, que predomina. Assim, consomem-se as missas, as canções (que são música de fundo nas actuais catedrais do consumo), as ornamentações, etc. Torna-se difícil, em muitos casos, verificar se essas acções natalícias são ainda cristãs ou já verdadeiramente pagãs – embora com forma aparentemente cristã.
Pessoalmente, parece-me que os resíduos do cristianismo poderão encontrar-se em manifestações natalícias menos explicitamente cristãs: o sentimento de solidariedade universal, que nos torna irmãos numa mesma humanidade – fraternidade de cuja origem claramente cristã já nos esquecemos, por vezes; sentido da gratuidade das nossas relações, representado nos presentes anónimos – dados pelo Pai Natal ou pelo Menino Jesus, dizemos nós; concentração na relação familiar, como resíduo de uma marca do cristianismo na cultura europeia, que parece ir desaparecendo dos nossos horizontes sociais e mesmo políticos, etc. Desse modo implícito e nessas experiências humanas, o Natal é ainda cristão, pois só no contexto da noção cristã de amor universal (ainda que só implicitamente) é que esses sentimentos são compreensíveis e mesmo possíveis. A disponibilidade gratuita para os outros, num ambiente marcado pela rentabilidade pura e dura, não deixa de ser um dos maiores «resíduos» do Natal cristão.
É claro que todas essas campanhas natalícias, incluindo a permuta anónima dos presentes – que originariamente seriam sempre dom gratuito – são cada vez mais absorvidas por uma «divindade» superior, a divindade do consumo. E quando todas essas experiências de fraternidade se transformam em hábitos de moda, em solidariedade mediática, manipulados para maior rendimento económico, então já se afirmam no horizonte deuses pagãos, que eliminam a verdadeira humanidade dos humanos, escravizando-os às suas exigências – todos, compradores e vendedores.
E o deus pagão do consumo é, por definição, um deus produtor de resíduos – restos dos produtos consumidos, como destroços de uma festa sem conteúdo e sem futuro; restos dos próprios consumidores, que são triturados numa roda que já não conseguem parar. Que sobra dos humanos, fiéis desse deus implacável? Sobra o lixo, como símbolo de um destino sem salvação; sobra o lixo humano, como restos de quem é excluído dessa festa deslumbrante e alienante; sobra o lixo humano, como resto de quem nunca encontrará sentido fora de um verdadeiro Natal.
Encontrar o verdadeiro Natal, por entre resíduos de todos os estilos, é, actualmente, o grande desafio lançado aos nossos contemporâneos: aos cristãos e aos não-cristãos. Porque o verdadeiro Natal, o de Jesus Cristo, é o Natal de uma nova humanidade, a humanidade dos humanos libertos de todos os deuses que, em permanente escravização, apenas deixam para trás resíduos mortais. É por isso que, séculos volvidos, continuamos a ter absoluta necessidade do Natal, como sempre.
João Duque, Faculdade de Teologia UCP-Braga
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