Natal na poesia portuguesa
Um olhar sobre oito séculos de literatura pela pena de José Tolentino Mendonça
Há mais de oito séculos que o Natal se celebra na poesia portuguesa. As belíssimas composições de Afonso X, do Mestre André Dias e do maior teólogo da nossa literatura que é Gil Vicente (bastaria, para qualquer natal futuro, o seu «Breve sumário da História de Deus»:
«Adorai, montanhas,
o Deus das alturas,
também das verduras.
Adorai, desertos
e serras floridas, o Deus dos secretos,
o Senhor das vidas.
Ribeiras crescidas,
louvai nas alturas
o Deus das criaturas…»)
Representam uma espécie de pórtico para uma viagem que, em cada época, encontrou os seus cantores. No século XVI, há um trecho anónimo, talvez cantado numas dessas romarias como ainda hoje se vêem
«Non tendes cama bom Jesus não
non tendes cama senão no chão»,
Mas também sonetos de Camões «Dos Céus à Terra desce a mor Beleza» e de Frei Agostinho da Cruz.
Ao século XVII bastariam os vilancicos de Sóror Violante do Céu
«Todos dizem, meu Menino,
Que vindes libertar almas,
Mas eu digo, vida minha,
Que vindes a cativá-las
Porque é tal a formosura…»,
Como ao século XVIII, do Abade de Jazente, de Correia Garção e outros, bastaria a composição piedosa do satírico Bocage, cotejando com elegância o texto profético de Isaías
«A Virgem será mãe; vós dareis flores,
Brenhas intonsas, em remotos dias;
Porás fim, torva guerra, a teus horrores».
O século XIX é de Garrett, com um poema delirante e “incorrecto”, onde faz valer o natal folgado e guloso da sua «católica Lisboa» sobre o «natal sem graça» dos protestantes londrinos. Mas, a seu lado, Feliciano de Castilho, canta «O Natal do pobrezinho» e João de Lemos e João de Deus descrevem sobretudo a experiência mística da contemplação. O século XX desdobra, seculariza, interroga, e, por fim, talvez adense o escondido significado do Mistério da Encarnação de Deus. Há o Natal devoto de Gomes Leal; há o Natal distanciado de Pessoa (o seu grande poema de natal é evidentemente o Poema VIII de O Guardador de rebanhos, mas isso dava outra conversa); o Natal dilacerado pela procura de Deus em José Régio
«Distância Transcendente,
Chega-te, uma vez mais,
Tão perto que te aqueças, como a gente,
No bafo dos obscuros animais»
E em Torga; o evangélico Natal de Sophia e de Nemésio (como esquecer aquele «Natal chique», onde «Só [um] pobre me pareceu Cristo»?); o Natal asperamente profético de Jorge de Sena («Natal de quê? De quem?/ Daqueles que o não têm?») ou de David Mourão Ferreira
«Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada».
Declinações diferentes de um único Natal.
José Tolentino Mendonça, Director do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (www.snpcultura.org)
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