Natal no Hospital. Natal Pascal
Em cada Noite de Natal, desde o ano 2000, a Capela do Hospital de S..João desce à Pediatria. Para contemplar e dar a contemplar o Mistério de um Deus que desceu a uma Criança, assumindo, assim, a vulnerabilidade máxima da nossa condição que em cada Criança tão claramente se manifesta. E manifesta-se, de um modo pungente, nas Crianças que atravessam o Natal no Hospital, atingidas pela doença.
Tinha sido no ano anterior, no Natal que inaugurava o Grande Jubileu, que a ideia surgira: fomos celebrar a Missa do Galo à Obstetrícia. Foi maravilhoso. Tudo estava bem: recém-nascidos lindos e saudáveis, mamãs e papás embevecidos, duplamente os avós; profissionais calmos e serenos, já que a situação estava calma e a serenidade tomava conta do ambiente. Como há 1999 anos, cumpriam-se nessa noite, celebrávamos o Nascimento no sítio em que se nasce. Mas a verdade é que, rezam as Sagradas Letras, há 1999 anos, o Menino não nascera num sítio de nascer. Nascera deslocado, relegado para a desolação de um estábulo, num lugar onde uma Criança não devia conhecer o dia.
No ano 2000, culminar do Jubileu, optámos por ir a um lugar que os nossos corações desejariam que não fosse necessário – o lugar do hospital onde se cuida das Crianças que sofrem. Todos desejaríamos que as Crianças não sofressem.
Sem consciência do que estava a preparar, só dei por ela quando me vi nela. Na minha memória ainda viviam as lembranças doces do ano anterior. Ainda que já percebesse que ia ser diferente, só de facto percebi até que ponto a diferença era diferente quando vi a Assembleia a constituir-se. Confesso: suei frio, enquanto me paramentava. Diante de mim, de todos os lados do berço da Pediatria que, desde essa Noite, uma vez por ano, na Noite de Natal, se torna altar, com uma simples tábua atravessada sobre ele, diante de mim, em torno de um berço que todos dias acolhe Crianças que sofrem, nessa Noite tornado altar, os rostos estavam tristes, havia lágrimas, Crianças doentes, por seu pé ou no colo da mãe ou do pai, uma, abandonada após o parto, no colo de uma enfermeira, os profissionais, tensos, sempre atentos ao menor sinal sonoro, choro ou apito de máquina, para acorrerem prontamente. Suei frio, repito. O que é que isto tem a ver com o Natal? Isto é Páscoa. Nunca, como nessa Noite, compreendi até que ponto e com que radicalidade o Natal reclama a Páscoa para se dizer na sua verdade plena.
Na introdução ao espírito da celebração, que havia escrito antes, já falava destas coisas. Mas só agora o vivia. Como viveram todos os que estiveram lá... e foram tantos! Para muitos, aquele momento pascal resgatou aquela Noite de Natal do exílio hospitalar, que no Natal mais como tal é sentido.
Foi a Criança abandonada após o parto que, no meu colo durante a homilia – lembro que sobre a necessidade de nos tornarmos crianças para descobrirmos o nosso lugar no colo de Deus, assim, totalmente entregues e confiantes como ela nos meus braços; e sobre o necessário desmascar do Natal que o consumo revestiu de artifício e esvaziou de ternura e presença; e sobre a necessidade da Páscoa Daquele que contemplávamos Menino para que o que os nossos olhos vêem em Pediatria não nos leve ao naufrágio nas marés de absurdo – encontrou o colo de uma Auxiliar de Acção Médica, durante a Liturgia Eucarística, e regressou aos meus braços, no final. Eu primeiro, com ela ainda no regaço da Auxiliar, depois todos, com a Criança no meu colo, genuflectimos em veneração diante de veemente Imagem de Deus Menino.
Concluo este testemunho, com as palavras da introdução que, nesse ano jubilar, soaram, solenes e significativas, para nunca mais deixarem de soar. Este foi o convite à Celebração, em que, cada ano, mais pessoas participam, nomeadamente profissionais da Casa e familiares de Crianças internadas, de olhos mais brilhantes que a luz das velas e mais líquidos que a água e o vinho no cálice que diz o maternal amor de Deus pela Humanidade
Reunimo-nos nesta Noite Santa para celebrar a Missa do Galo. Este átrio, onde as portas e os corredores dos vários Serviços de Pediatria se juntam formando uma cruz, torna-se templo, nesta Noite. Este lugar ajuda-nos a penetrar no Mistério desta Festa: há dois mil anos, Deus fez-Se criança. Deus-Criança que assume a cruz da condição humana, como qualquer das muitas crianças que nestes Serviços em cruz experimentam a cruz da condição humana, ainda sem saberem o que isso é.
Celebramos, neste Natal tão singular, o Bimilenário da Encarnação Redentora de Deus em nossa história. Se Deus-Criança diz a Encarnação, a cruz deste lugar diz-nos a Redenção, o mistério da Páscoa, que é a razão de ser do Natal, a vinda de Deus até nós em Jesus Cristo. A cruz deste lugar diz-nos a nossa necessidade de sermos libertos, de sermos salvos, de recebermos do Eterno um sentido que rasgue o horizonte da morte e passe para além dos limites tão curtos do tempo a que estamos sujeitos, como tão claramente transparece neste lugar, em que o braço mais longo da cruz, o que a liga à terra, descendo, dá acesso à Urgência, sinal da precariedade de cada um de nós.
Por isso, no Natal do Ano 2000, quisemos vir aqui celebrar a Eucaristia e procurámos que o Altar fosse um berço: um berço no coração do lugar do sofrimento das crianças, do nosso sofrimento, para que a verdade deste lugar e deste sinal diga a verdade de Deus que nasce como oferta de sentido e esperança e alegria ao nosso absurdo, à nossa angústia, à nossa dor.
Esta Celebração, culminar do Jubileu, abre-se em convite à festa: Deus vem ao encontro de cada um. Queira cada um ir ao encontro de Deus, queira cada um acolhê-Lo. Cantemos, jubilosamente, acolhendo a luz que brilha nesta Noite.
No ano seguinte, voltámos à Obstetrícia. Mas, depois, regressámos à Pediatria. E nunca mais trocámos. É ali que, mais instantemente, com uma premência absoluta, cada Natal reclama o Memorial pascal. Porque é ali que se abre a derradeira interrogação que plasma o mistério da nossa condição: sofrer o Inocente. Porquê? Onde está Deus? A única possibilidade de sentido é, precisamente, a reivindicação pascal do Natal, ali, no coração do hospital, no coração do mistério do que somos, no coração da experiência amorosa do Mistério que Deus é, encarnando para redimir e não redimindo por outra via que não a da encarnação: Deus connosco.
Já disse: nunca mais deixámos de ir celebrar a Missa do Galo à Pediatria. Deus fez-se Criança e é no sinal das Crianças – e, com que grau de interpelação, no sinal das Crianças que sofrem – que nos aponta a via da redenção – tornar-se criança, capaz de Deus, livre para ele, competente para a confiança levada ao termo da dependência completa. Natal é Páscoa.
Igreja, aprofunda a consciência do que deves ao Presente que vivemos e abre, este Natal, o coração ao apelo inadiável de presença pascal que te lança cada Hospital. Cada dia. Todos os dias.
Pe. J. Nuno, Capelão do Hospital de S. João
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