Presidente da Amnistia Internacional Portugal indica «importância premonitória» de texto que inspirou outros documentos
Uma Declaração, legalmente, não é de aplicação obrigatória, mas uma referência orientadora. Ainda assim, ela é mais do que um catálogo de boas intenções, para os Estados que as assinam.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada faz agora 60 anos, inaugura, na prática todo um discurso que marca as agendas políticas contemporâneas e é assumido por imensos actores sociais e políticos, que a adoptaram como referência. Na realidade política, jurídica e filosófica, em termos da Humanidade, é uma aquisição muito recente.
Muitas noções e valores a que hoje chamamos direitos humanos, já se encontram no discurso religioso, filosófico e em práticas políticas e códigos de épocas e áreas muito antigas e diferentes. A Antígona de Sófocles já invoca o respeito superior às “leis imutáveis e não escritas”, para a desobediência civil perante a arbitrariedade do poder.
Pode dizer-se que por todo o mundo, do Egipto, à Persia, ou ao Japão, há exemplos de experiências civilizacionais precursoras em matéria de direitos humanos, contra as injustiças, os abusos, a arbitrariedade e a tirania do Poder. No Ocidente, as declarações de direitos são herdeiras da filosofia grega, do direito romano, da tradição judaico-cristã, do humanismo, da luta pela democracia.
Apesar das suas imperfeições e de serem historicamente datados, esses documentos mantêm muito do vigor e da capacidade de atracção originais, reflexo das complexas lutas políticas e filosóficas, e dos ideais e valores que as inspiraram.
Até ao Iluminismo, que reivindicou direitos para todos (embora entendendo ser absurdo alargá-los às mulheres, para o caso equiparadas a animais), os direitos estavam associados a privilégios do poder (do Rei, dos nobres, do clero, por exemplo). O direito de consciência e de liberdade religiosa, contudo, só viria a ser reivindicado como o primeiro dos direitos, no contexto dos excessos cometidos nas guerras religiosas. A consagração legal de mais direitos será resultado de outros processos históricos de emancipação da Humanidade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos também foi aprovada num contexto conturbado, difícil e perturbador, no seguimento dos horrores da II Guerrra Mundial.
Havia necessidade de prevenir guerras futuras, de criar novos instrumentos internacionais entre nações e de se estabelecer um conjunto de referências morais internacionais. A Declaração Universal era esse documento, a que se deveriam seguir Pactos que tornassem o seu cumprimento vinculativo para os Estados (o que só aconteceria em 1976).
A Declaração Universal não é, em sentido estrito, apenas um documento político ou jurídico, nem é apenas de inspiração Ocidental. Para a sua redacção foram ouvidas personalidades religiosas, filósofos, cientistas, sábios, provindos de diferentes origens. A comissão de redacção, presidida por Eleanor Roosevelt, jornalista de profissão e viúva de um anterior Presidente americano, incluía apenas dois juristas, tinha homens e mulheres, cristãos, muçulmanos, judeus e ateus, de países de vários continentes e de sistemas políticos diferentes. A sua matriz originária foi universal, tal como os direitos humanos nela plasmados.
Celebrar agora os 60 anos da Declaração Universal deve ir para lá da ritualização de um documento histórico de direitos todos os dias desrespeitados. Deve, antes, ser o reconhecimento da importância premonitória de um texto que inspirou muitas Constituições nacionais posteriores, o sistema de protecção internacional existente e muitos outros normativos.
Deve ser, essencialmente, para todos nós, uma responsabilidade tornar a Declaração mais efectiva. Devemos-lhe isso: ela foi apenas o princípio.
Lucília José Justino
Pres. Amnistia Internacional Portugal