Manuel Linda, Director do Centro Católico da Cultura/Vila Real
Nunca foi nem será possível inventariar a quantidade de realizações culturais especificamente cristãs nem discernir aquelas que foram influenciadas pela mundividência evangélica, mesmo que disso se não apercebam ou digam expressamente rejeitar. Seja como for, estaremos de acordo em dois dados: que a Pessoa e a Mensagem de Jesus Cristo continuam a colocar-se à base de alguma – e, por vezes, muito boa - produção cultural e artística; mas, também, que esse pensamento e arte raramente conseguem ultrapassar o círculo intra-eclesial, mormente a liturgia. Dito em termos simples: não desapareceu completamente a tradicional relação triangular entre o cristianismo, o alto pensamento e a produção artística, mas, no nosso tempo, esse dado foi relegado para o campo das sub-culturas e, por isso, quase nunca influi verdadeiramente na grande cultura dominante nem assume um papel preponderante. O laicismo teimoso e rançoso que recusa que a referência à fé dê entrada na futura Constituição Europeia é prova disso mesmo.
O cristianismo e a cultura
Ora, a interligação entre Mensagem cristã, cultura e arte é absolutamente essencial, fundante e inseparável. Não, obviamente, porque a fé reclame para si o estatuto de Escola ou corrente ideológica. Mas sim porque o mistério insondável de Deus é tão profundo, tão alto e tão comprometedor que supõe e carece de todas as linguagens, mormente daquelas que traduzem o humano mais elevado. A melhor – porventura a única! - resposta ao Deus que nos toca com a sua luz inebriante só pode ser a que encontraram os contemplativos e os místicos: abrir-se, demorar-se a contemplar, saborear e sentir como que a necessidade física de exprimir em palavras de sabedoria a absoluta beleza divina que nos provoca. E essa palavra de sabedoria pode usar todos e não precisa de recusar nenhum dos meios possíveis, de acordo com a sensibilidade de quem se exprime: pode ir da pura filosofia à música, da literatura à arquitectura, do cinema ao novíssimo design das páginas Web.
Se isso não oferece contestações, porque motivo é que a Igreja não repensa mais a sua actuação em termos de cultura e arte e porque é que as massas são tão pouco tocadas pelo referencial cristão? Que faltará à acção eclesial para que seja aceite e integrada na cultura dominante, a ponto de a fermentar, a transformar e a humanizar? Porque é que os intelectuais crentes pressentiram tão agudamente e o Magistério tanto recomenda a «evangelização da cultura»?
A resposta simples e convicta pode ser simplesmente esta: porque nesta nossa época de forte mutação cultural, uma parte significativa do Primeiro Mundo perdeu a memória das suas raízes crentes e não busca o sentido da sua vida na proposta do Evangelho e na especificidade da fé cristã.
Ora, ao verificar isto, o que normalmente fazemos é chorar sobre o leite derramado. É que quase sempre somos capazes de descrever académica e muito claramente a situação e de enumerar as causas e as consequências, mas sentimos que nos faltam soluções para alterar este estado de coisas. Pois bem: embora fazendo profissão de fé na mais completa impossibilidade de repetir soluções do passado, é verdade que uma história tão rica e tão longa como a da Igreja lhe pode fornecer pistas. Nesta linha, seja-me permitido referir duas épocas de também forte mutação cultural, embora por razões distintas: a cerrada rudeza das mentalidades e a falta de um modelo de organização social satisfatório com o desaparecimento do feudalismo moribundo, no início do segundo milénio da era cristã; e o tremendo choque dos humanismos renas-centistas que culminaram na Reforma protestante e demarcaram mentalidades tão antagónicas que levaram a guerras de religião.
Quer num, quer noutro caso, a saída foi encontrada na cultura e na arte. Quanto à cultura, basta lembrar as Escolas conventuais e catedralícias e a consequente fundação das Universidades, no primeiro caso, e a implementação da catequese, a difusão de obras pela imprensa, o recurso ao teatro religioso, uma melhor formação do clero, etc., no segundo. No que diz respeito à arte, foi tão notória a forma como se recorreu a ela que, entre nós, se geraram mesmo dois estilos absolutamente demarcados e próprios: o românico e o barroco. E, hoje, não seria possível um recurso ainda mais intenso às múltiplas formas de comunicação artística, com especial relevo para as novas linguagens derivadas do cinema, da Internet e da sempre actual literatura, ainda que, para isso, se tenha de recorrer ao patrocínio de mecenas, como aconteceu com os Príncipes do Renascimento.
Linhas de força da nova cultura
As novas linguagens, porém, por si representam muito pouco. Só se compreendem se ao serviço de um conteúdo. Então, é ao conteúdo – âmbito específico da cultura — que a Igreja tem de prestar maior atenção. Sem preocupações de exaustão, referiria as seguintes quatro tarefas como cruciais, já que correspondem a outros tantos vazios da cultura de massas dominante.
Em primeiro lugar, a necessidade de desmascarar, porque inexistente, o tão seguido «Deus íntimo», isto é, o deus que cada um imaginou ou fabricou para si mesmo, e que propiciou o falado retorno do religioso. Porque de fabrico próprio, esse deus tanto pode coincidir com as formas diáfanas da gnose da New Age, como com uma divindade violenta e sanguinária, tão ao gosto dos fundamentalismos e dos terrorismos. A proposta do cristianismo só pode ser a do «totalmente Outro», o Deus Pessoal revelado e manifestado por Jesus Cristo, acessível ou imanente ao homem, mas também absolutamente transcendente. Enquanto este desmascaramento se não fizer, continuar-se-á a desconfiar do cristianismo e, eventualmente, como no tempo das perseguições movidas pelo Império Romano, a acusá-lo de... ateísmo.
Depois, é urgentíssima a procura de uma nova racionalidade que seja global e que, como tal, integre harmoniosamente o religioso, o fiducial, o ético, o estético e o simbólico. A mentalidade dominante, que remonta ao Renascimento e se encrespou no Iluminismo, é a da procura do infinitamente pequeno, do decompor o ser em partículas mínimas. É verdade que este método, no século XX, possibilitou a descoberta de muitas leis da Química e da Biologia, que muito interessam à humanidade. Mas também é certo que a divisão quase sempre mata o ser e que com este método não é possível descobrir um sentido para a vida do homem e para a história. Sem uma verdadeira «Razão», caímos nas «razões» e depois nas «sem-razões» e «sem-sentidos». Como o nosso mundo sabe.
O cristão deve também instaurar, em contínua permanência, uma hermenêutica do julgamento da linguagem e das mentalidades, pois, muitas vezes, estas podem esconder verdades diminuídas. Pense-se em dois exemplos. Ao acentuar-se tanto a centralidade da pessoa, vamos, sem dúvida, ao encontro da grande cultura, mas também podemos acabar por fazer o jogo do individualismo imperante. Será que temos acentuado a família, verdadeira comunidade de pessoas e sector-chave da tradição cristã, com a mesma convicção? Creio que não. Por outro lado, não são cristãs as nossas resistências implícitas a tudo o que tenha a ver com «qualidade de vida». Ora, a verdade é que a vida plena, a vida de auto-realização – se expurgada do vírus do egoísmo - faz parte da tradição cristã e concede razão à própria Encarnação do Verbo: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).
Nesta linha, diria ainda que o cristianismo deve funcionar como sentinela perante as artimanhas da mentira institucionalizada, servida às massas na bandeja refulgente dos meios de comunicação social. Esta mentira tanto reside nas falsas visões da cultura dominante que reduz o homem a mero aglomerado de células biológicas, como na manipulação política que cada vez mais entra no círculo vicioso do fazer o que o povo quer para que o povo dê o voto. Esta tarefa deve ser realizada por todos os crentes, mas muito especialmente por verdadeiros «centros de desalienação» que corporizem, tanto quanto possível, o ideal cristão. No passado, foram os mosteiros. E no futuro? Talvez ainda tenha de passar por aí, pois não parece que os novos movimentos eclesiais a tenham conseguido desempenhar.
Conclusão
Enfim, com este texto outra coisa não pretendi que não fosse dizer que não chega limitarmo-nos a interpretar a nossa situação - neste caso, se o Evangelho está presente ou ausente da produção cultural contemporânea -, mas que importa reorientá-la e endereçá-la. E eu creio que essa reorientação, depois da via da santidade, só pode passar pelo caminho da cultura e das artes. Aliás, como a Igreja fez secularmente. É que hoje, mais do que nunca, a beleza conta e a vida crente deve ser a confirmação de que é possível juntar, em perfeita unidade, a vida boa e a vida bela. Esta «via pulchritudinis» não constituirá o grande desafio para o cristianismo do terceiro milénio?
Manuel Linda, Dir. Centro Católico da Cultura/Vila Real