Dossier

O «leigo» e a Igreja pós-conciliar

João Duque
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1. Como é sabido, o texto da Constituição Dogmática do Concílio do Vaticano II sobre a Igreja, Lumen Gentium, é o primeiro documento do magistério eclesial que dedica um capítulo inteiro (o quarto) aos leigos, resumindo as questões relativas à sua identidade e ao seu papel na Igreja e no mundo. Quanto à questão da identidade, procura-se uma formulação que não fique pela «negação» do ministério ordenado – o leigo como não-clérigo – mas que avance elementos positivos na sua caracterização, tal como já vinham a ser formulados por alguns teólogos pré-conciliares. E o primeiro desses elementos é, precisamente, o facto de se ser cristão. Leigo, em realidade, é todo o cristão, sendo-o precisamente pelo seu baptismo. Depois, pode vir a ser ordenado, não «abandonando» então o seu estatuto de cristão nem o facto de, basicamente, ser «leigo». Em realidade, contudo, isso continuaria a reduzir este qualificativo ao facto de permanecer como cristão não-ordenado, pelo que o documento conciliar propõe – mais uma vez, por inspiração em muitos contributos teológicos anteriores – uma caracterização própria: o leigo é aquele cristão cuja vocação se realiza especialmente no trabalho mundano, isto é, no quotidiano da vida social, cultural, económica, familiar, etc. O primeiro elemento – cristão de pleno direito e dever – e o segundo – cristão mergulhado no século – constituem, então, o fundamento para descrever a tarefa do leigo no interior da comunidade eclesial e no interior do mundo seu contemporâneo. 2. Também é sabido que essas indicações provocaram transformações de monta na vida quotidiana de muitos cristãos e de muitas comunidades eclesiais. Paulatinamente, foi-se superando a ideia – em realidade, sempre incorrecta, mas muitas vezes praticada – de que a Igreja era primordialmente constituída pelos clérigos, responsáveis pela sua missão, sendo os fiéis restantes sobretudo «consumidores» da «oferta» clerical, quando muito seus colaboradores. A vida das comunidades eclesiais – desde a liturgia à catequese e a inúmeras outras actividades – conheceu, então, um sempre crescente envolvimento daqueles cristãos que foram assumindo consciência da sua tarefa como Igreja. Tendo-se aliado à questão teológica de fundo o facto sócio-cultural da diminuição acentuada de ministros ordenados, a Igreja passou a depender do compromisso activo e participativo de todos, seja qual for a «qualidade» do seu ministério. Além disso, os desafios sociais e culturais de uma sociedade secularizada exigiram, cada vez com mais acuidade, uma intervenção nos diversos terrenos do quotidiano, que só os cristãos aí presentes poderiam levar a cabo. Assim, a missão da Igreja, na transformação progressiva do mundo em espaço que acolhe o Reino de Deus, tornou-se primordialmente uma missão «laical», na qual participam também, ao seu modo próprio, os ministros ordenados. 3. O processo pós-conciliar, contudo, não esteve isento de algumas ambi-guidades e algumas desilusões, assim como de muitas irrealizações. Por um lado, uma incorrecta compreensão da valorização do leigo no contexto da comunidade eclesial, mantendo em realidade a anterior mentalidade de diferentes «dignidades», identificou essa valorização com a realização, por parte do cristão não-ordenado, daquelas tarefas que são específicas do ministro ordenado. Assim, um laicado «clericalizado» acabou por tornar, por vezes, ainda mais complexas as relações de poder no interior da comunidade eclesial, com grave prejuízo para a missão de toda a Igreja. Por outro lado, com base numa errónea identificação de ministério – serviço – com exercício de poder, alguns clérigos viram-se assaltados pelo medo de perder esse «poder», reagindo de forma muitas vezes agressiva e vedando a participação laical na vida da Igreja. E não se trata de um medo que afecte apenas uma geração mais velha, que conheceu outro contexto. É um perigo constante num processo ainda em curso. Para além disso, encontramos frequentemente uma linguagem – até na comunicação social – que ainda identifica a «Igreja» com os ministros ordenados, sobretudo com os bispos. Não raramente, muitos cristãos declaram-se «contra» a Igreja, sem a percepção de que estão no interior da comunidade que parecem querer recusar. É, sem dúvida, importante o exercício da crítica no interior da comunidade eclesial. Mas deveria tratar-se sempre de uma crítica na consciência de que se pertence àquilo que se critica. Aliás, essa será a crítica mais séria, honesta e eficaz. O maior problema da recepção pragmática do Concílio é, contudo, o al-heamento de grande parte dos cristãos relativamente aos seus ensinamentos. Não simplesmente por desconhecimento teórico, mas porque se colocam muitas dificuldades à real aplicação daquilo que aí é ensinado sobre a missão do leigo. De facto, a pastoral terá que continuar a insistir fortemente no facto de que qualquer cristão é, no interior da comunidade eclesial, sujeito de direitos e – na mesma medida ou ainda mais – sujeito de deveres. Na prática, a corresponsabilidade de todos os cristãos pela missão da Igreja no mundo continua a só ser aplicável, de facto, a minorias eclesiais. 4. Tendo em conta que o qualificativo «leigo» possui uma contextualização muito própria e não está livre de ambi-guidades, penso ser necessário entrar num caminho que supere mesmo a distinção entre «leigo» e «clérigo», como «categorias» de pertença eclesial, mesmo que já não impliquem subalternização. Em realidade, teremos que procurar construir uma Igreja de cristãos, iguais pelo seu baptismo – na linha da Igreja dos primeiros séculos. Claro que não se trata de uma igualdade uniforme, mas de uma comunidade em que os iguais são diferentes, precisamente por exercerem diferentes ministérios. No interior desses ministérios, alguns são ordenados, não podendo isso estabelecer uma fissura na estrutura igualitária de base. Assim, a comunidade de cristãos iguais assume a missão da Igreja na diferença do ministério e do carisma de cada um, na fidelidade ao único Espírito e para o bem de todos – da comunidade eclesial e de toda a humanidade. João Duque Professor de Teologia - UCP


Concílio Vaticano II