No registo que a História há-de fazer de João Paulo II e do seu longo pontificado, figurará em lugar de destaque a determinação com que prolongou o seu intenso olhar crente sobre a agenda das relações internacionais. Se os seus antecessores abriram o caminho para uma presença forte da Igreja no processo de humanização das relações internacionais, João Paulo II marcou a sua acção por uma aspiração à moralização desse universo de relações. A liberdade, a paz, o diálogo e o perdão constituíram os eixos desta aposta na moralização da vida internacional.
Em primeiro lugar, a liberdade. O bispo Wojtyla encarna uma incindível ligação entre cristianismo e repúdio do totalitarismo agnóstico. É em nome da fé – e não seduzido pelo credo liberal moderno – que, já Papa, dá continuidade ao confronto sem tréguas contra a Estado aniquilador das liberdades. João Paulo II está pois reconhecidamente no centro da derrocada do império soviético. O ocidente aplaude-o mas é um louvor equívoco: o Papa não se move por nenhum outro fascínio doutrinal senão o da centralidade da referência ao que entende ser a verdade de Deus.
Em segundo lugar, a paz. Teimosia idealista, dirão os cínicos. Enganam-se: é ainda e sempre em nome de uma fé ordenadora do social que João Paulo II insta as nações a travarem a deriva da solução bélica das suas controvérsias, caminho em que o Papa vê uma expressão última de uma cultura materialista e sem densidade humana. Mas mais: João Paulo II não abdica de percorrer os caminhos das guerras anónimas e fratricidas dos anos noventa, e de animar aí o esforço de comunidades católicas (como a Comunidade de Santo Egídio) e de igrejas locais (a timorense, por exemplo) no restabelecimento dos laços de sociabilidade.
O diálogo, em terceiro lugar. Assis é porventura o ícone maior do pontificado de João Paulo II. No diálogo inter-religioso (entrecortado por anacronismos graves como o célebre Domine Jesus), e no ecumenismo de banda larga que Assis anuncia, o Papa faz reconhecer a necessidade de uma abertura que parta da firmeza de fundamentos de cada interlocutor e que não pretenda resultar na sua descaracterização. O combate por um ethos mundial, de que as igrejas serão suporte, é para João Paulo II a missão central que um homem de Deus pode/deve desempenhar na arena internacional. E o diálogo ecuménico não teve para ele outro sentido senão esse.
O perdão, enfim. O Papa afasta-se dos cânones da realpolitik para dar protagonismo ao pedido de perdão e à dádiva de perdão. É a subversão total da “moral normal”. O perdão dado a Ali Agka como o perdão pedido aos judeus são acima de tudo gestos que quebram a espiral da intolerância e da violência. E é nesse registo de moralidade de alta intensidade que João Paulo II associa intimamente perdão a solidariedade como valores-guia das relações internacionais. O perdão da dívida dos países mais pobres prolonga a denúncia das estruturas de pecado que geram essa dívida imparável. É porque são deixados em roda livre, sem balizas morais, que os organismos e as políticas de comércio ou de finanças internacionais se convertem em devoradores impiedosos do Sul do Mundo. O perdão e a solidariedade são os antídotos e as políticas públicas serão as mediações frágeis desses antídotos.
Não sei o que a História dirá de João Paulo II. Mas sei o que o mundo deve à sua sabedoria para lá do conhecimento e ao seu amor para lá, muito para lá, de si próprio.
José Manuel Pureza