Dossier

O pastor e o teólogo na encíclica de Bento XVI

Henrique Noronha de Galvão
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O sec. XX foi caracterizado por uma viragem que atingiu todas as formas da cultura. Há então um tempo de krisis, um pôr em causa os modos instituídos da criação cultural, uma problematização daquilo que, até aí, se considerava evidente, como formulou o filósofo Gabriel Marcel. Mas não é só no plano da filosofia ou das artes que isso se verifica. Também na teologia se vive uma situação de fin de siècle, em que às formas praticadas parece não corresponder um verdadeiro conteúdo, pois se encontram deslocadas do contexto em que, no passado, eram expressão autêntica de vida. Na teologia esta situação levou a um profundo e vasto processo de renovação, em que se procurava refazer o pensamento teológico a partir de dentro, a partir da própria essência da fé cristã, ou, dito de outra maneira, a partir das fontes. O movimento bíblico fornece então o acesso directo àquela que é, como diria o concílio, "como que a alma de toda a teologia", um acesso cientificamente fundamentado. A teologia histórica, que lança as suas bases seguras, garante um vasto conhecimento da literatura cristã a partir dos primeiros séculos. O diálogo com a filosofia contemporânea permite lançar pontes entre um tipo de reflexão própria dos tempos contemporâneos e o pensamento que havia enformado as grandes sínteses do passado. A percepção de que há um pensamento prático com leis diversas do teórico, leva à concepção de uma teologia pastoral com identidade própria. A par disso - um aspecto por vezes esquecido - há uma entrada espectacular da literatura na teologia, sobretudo pela mão de Hans Urs von Balthasar. Mas também Ratzinger, inspirando-se num autor dos primeiros séculos, dizia que, para a teologia, é tão importante a filosofia como a filologia. A personalidade teológica de Joseph Ratzinger cresce neste contexto. Ao chegar a Papa, vemo-lo como que a dar continuidade a esse programa de renovação, agora já não, propriamente, no âmbito da teologia mas da vida da Igreja. Nesta sua primeira encíclica, no fundo, o que faz é conduzir a consciência eclesial à sua essência mais profunda, ao seu centro. É afirmação sua, ainda Cardeal, de que há "um centro (Mitte) a ser encontrado". E esse centro não pode ser outro senão aquele que S. João exprimiu dizendo que "Deus é Amor". É pois desse Amor que é Deus, que o Papa Ratzinger tem de falar, é esse Amor que ele tem de anunciar à Igreja e a todos os homens. E fá-lo indo às fontes, em primeiro lugar à Sagrada Escritura. O seu método baseia-se na filologia, o que o leva a deter-se na análise das palavras, consideradas não prosaicamente como veículos de um pensamento, o único que verdadeiramente interessaria, mas como elementos constitutivos da cultura em que a revelação de Deus tomou corpo na história. Se a interpretação bíblica de Ratzinger parte de um cuidadoso estudo da investigação exegética recente, ele submete sempre os resultados dessa análise ao diálogo com uma reflexão teológica ao serviço da fé eclesial, inspirando-se nos Padres da Igreja. A sensibilidade histórica de Ratzinger dá-lhe uma fina capacidade de percepção não só do significado que as realidades passadas tiveram na sua época, mas também da lição que nos legaram para os tempos de hoje. Dá-lhe, sobretudo, uma lúcida percepção dos desafios que a situação presente, vista no amplo contexto da história em que se insere, representa para nós. Pela sua atenção concreta às pessoas, que cultivou já desde os seus tempos de padre e professor, foi adquirindo um conhecimento das necessidades pastorais ou simplesmente humanas, dentro e fora da Igreja, que agora como Papa sabe fazer frutificar. Realiza assim, para a Igreja universal e para a humanidade, o seu ideal de ser teólogo à maneira de pastor - agora a sua primeira responsabilidade. Henrique Noronha Galvão, Professor de Teologia na UCP


Bento XVI