Dossier

O PS não é pelo Sim

Daniel Sá
...

Poucos dias depois do Natal, estava eu a tirar espinhas do peixe que a Marta, a minha netinha de quinze meses, ia comendo. Imagina-se o cuidado com que o fazia. De súbito, surgiu-me uma daquelas ideias que não sabemos de onde vêm. E se eu tivesse de tirar espinhas a peixe destinado ao Saddam Hussein?... Fá-lo-ia com o mesmo cuidado. Apesar disso, não entendo o empenho e a fúria com que tanta gente, que nunca mexeu uma letra em favor do povo que ele oprimia e torturava, tem rasgado as vestes da palavra em gritos de escândalo na caixa alta dos jornais. Mas esse clamor generalizado demonstra que a Europa ainda acredita que há valores invioláveis. Se matar um monstro como Saddam nos parece um acto bárbaro, é porque isso significa que a vida é um direito inviolável, mesmo para a alma mais tenebrosa que exista sobre a face da Terra. Portanto, ao contrário do que muitos querem fazer crer, ainda há valores absolutos. Não vou discutir se o aborto é passível de legalização ou não. Nem precisaria de sair do campo da ética para entrar no debate. A minha questão é muito mais simples. Deveria o meu partido, qualquer partido, afirmar em nome colectivo que é a favor do aborto? E, se os políticos - alguns políticos - condenam a Igreja por entrar na disputa com a bandeira da clemência, o contrário faz sentido partidariamente? A vida é um valor moral, mas nunca pode ser politicamente negociável. O PS não tem no seu programa a legalização do aborto. O PS não pode sujeitar milhões de eleitores ao engano de que a opção é também política, não pode pô-los perante o dilema de traírem as suas convicções éticas e morais ou o seu partido. Quem, neste caso, está a trair, é o PS, apesar de dar liberdade de escolha e de campanha aos seus militantes. Era o mínimo que havia a fazer. Uma das ideias infelizes da propaganda do próprio partido é considerar a legalização do aborto um acto civilizado. Se a civilização é também cultura, um povo civilizado não necessita de matar os seus filhos para sobreviver. Um povo civilizado sabe escolher a hora certa de concebê-los. E sabe como proteger todos os que nasçam. O meu problema, além de ético, é também de algum modo filosófico. O embrião de que resultei já era eu? Se tivesse sido destruído, esta mente que me define como pessoa não existiria? Se a identidade individual pudesse ser substituída, se o espírito que não animou o corpo a resultar de um embrião ou de um feto "encarnasse" em outro, então não haveria problema ético ou moral no aborto. Mas será assim? Muito provavelmente, não. A esquerda está cada vez mais transformada em movimento de liberdade sexual, em vez de ser um projecto social. A todo o custo. Tentando atirar o libelo da ignorância para os que não vão por aí. Além da falta de respeito para com a maior parte dos seus eleitores açorianos, o meu partido corre o risco de ter de aceitar mais uma derrota. Depois não se justifique com o a religiosidade do povo, com isto e com aquilo. Será uma derrota, e pronto. Aliás, quanto a mim, moralmente o PS já se derrotou a si mesmo. Derrotou-se? Não, enganei-me, eu continuo no PS e não aceito a decisão das cúpulas. E milhares de outros, nos Açores, fazem o mesmo. Post scriptum - Por maldade ou incapacidade para ler bem, não falta quem vá acusando o Papa de ter comparado o aborto ao terrorismo. Aqui deixo o que disse Bento XVI. Facilmente se percebe que não pôs no mesmo plano um e outro. "Junto com as vítimas dos conflitos armados, do terrorismo e das mais diversas formas de violência, temos as mortes silenciosas provocadas pela fome, pelo aborto, pelas pesquisas sobre os embriões e pela eutanásia." Daniel de Sá Escritor


Aborto