Dossier

O Turismo ao serviço do encontro entre os povos

José Silva Lima
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Conferência de José Silva Lima no VI Congresso Mundial sobre a Pastoral dos Turismo, em Bangkok

O ENCONTRO O encontro está no coração deste Congresso Mundial como está também centro do desenvolvimento humano pessoal, cultural e civilizacional. Quando alguém pensa, desde tenra idade, fá-lo na lógica de algo que encontra. Alguma coisa, alguém, um olhar, um gesto, um gemido, uma voz e até um silêncio, estão na origem do encontro com o pensamento. O ser humano é um animal diferente porque, cedo, aprende a formalizar as surpresas de encontros sucessivos, sem os quais não se faz nem avança. Ser humano significa tão somente ser de encontro, capaz de dizer as coisas, de contemplar a beleza que o extasia, de desejar mais para encontrar e mesmo de reflectir sobre encontros indesejáveis e de decidir em face da sua possível utilidade. Este Congresso é a prova desta decisão de jogar a vida pessoal no encontro, de avaliar orientações uns com os outros, de fazer com que o futuro dependa deste espaço de intercomunicação, repleto de movimentos de presença e de surpresas que transformam, solidarizam, travam, justificam e edificam. Estamos diante de uma estrutura antropológica fundamental, se pensamos naquilo que nos institui na vida. O pensamento torna possível a diferença humana. As pedras não se encontram, mas justapõem-se e amontoam-se. Os animais formam pares, grupos mais ou menos organizados, sentem a proximidade e cheiram os odores mesmo à distância; podem mesmo conjugar-se, acoplar-se; porém, não se encontram, embora possam estar juntos. Duas bolas de futebol podem tocar-se e cruzar-se, podem desenhar trajectórias, mas não se encontram. Batem-se, chocam. Quando se fala de encontro, o pensamento está subjacente como marca de uma diferença criadora. Não se trata de um facto bruto, mas reflexivo. O encontro aponta para uma realidade que é e que sabe dizer-se, que estrutura e que se torna tema, que recria e que simboliza. Do encontro surge a vida, sempre precedida da palavra que o diz. E quando o bebé encontra pela vez primeira, balbucia também os primeiros sons, mergulhando de forma incipiente nos símbolos que o dizem diferente. Depois, o encontro da palavra é o desdobramento de toda a cultura que o precede e também a tradução de uma originalidade, que é a dele. Então, os encontros sucedem-se, como se de outra coisa não necessitasse o seu desenvolvimento. Mas, o que dizemos quando dizemos encontro? – Certo é que detectamos precedências, talvez como pré-encontro. Há o seu desdobramento enquanto encontro, que não deixa de o ser mesmo quando se torna desencontro. Depois, aparece a sua consequência, uma realidade nova, o pós-encontro que, talvez, assinale as marcas do encontro. Assim, apresentarei três aberturas deste tema que me sugeriram: o pré-encontro, o encontro e desencontro e o pós-encontro. Parece um jogo, como o da vida que temos entre mãos enquanto dom oferecido. É no jogo deste realidade que as culturas se transformam, que pode haver bem-estar e felicidade, que pode pensar-se num panorama universal sustentável e equilibrado para todos. Quando se cultiva a diferença do pensamento, o encontro rasga novas harmonias, o que torna singular o projecto humano. Adivinha-se que a perspectiva deste estudo se enquadra num projecto antropológico cristão em registo pastoral. Interessa reflectir sobre o que somos para que haja de facto serviço quando há encontro entre os povos (como sugere a temática do Congresso). I. PRÉ-ENCONTRO A Comissão Pontifícia para o Turismo e Mobilidade Humana, já em 1969, caracterizava uma “era nova” na qual a Igreja acabava de entrar, no encontro com o mundo. “Igreja e Mobilidade humana”, a Carta às Conferencias episcopais, depois ratificada por Paulo VI em 1974, definia esta “era” como pós-industrial, qualificada por “rápidas e profundas mudanças que progressivamente se estendem ao universo inteiro”, aludindo explicitamente ao nº 4 da Constituição Conciliar Gaudium et Spes . As mudanças a que se alude são suportadas particularmente pelo dispositivo científico-técnico que, então, avançava sem receios e que não cessou de se impor no quadro geral do mundo ao longo das últimas décadas. De facto, os suportes disponíveis para o desenvolvimento humano, individual e colectivo, alteraram-se profundamente ao longo das recentes gerações. Qualquer encontro não é sem estes suportes. Ao falar de “era nova” com legitimidade, pressupõe-se um enquadramento suficiente e diferente que torna possíveis novas formas de estar no mundo, constituindo um capital prévio para quem entra em processo de amadurecimento. Estamos diante uma das bases indispensáveis do pré-encontro, a condição da sua possibilidade e por isso do desenvolvimento humano, social e comunitário. Em registo agrário, industrial ou terciário, o capital prévio é diferenciado. A “nova era” na qual hoje se avança é marcada pela própria transformação vertiginosa dos meios disponíveis, o que constitui factor de aceleração mutacional. É implacável e irrefreável a velocidade conquistada nas diferentes actividades onde cada ser humano se realiza. Se, num passado recente, era preocupante a questão dos ritmos das cadeias industriais aos quais homens e mulheres eram submissos, esta questão da aceleração tornou-se um factor relativamente universal, estando a ela sujeitos todos os seres humanos, dependentes dos produtos técnicos (e da sua actualização) nos meandros mais privados da existência. Esta é uma das realidades dadas, previamente disponíveis, que marca hoje indelevelmente qualquer encontro e, consequentemente, o desenvolvimento. Nesta “era nova”, o capital prévio não se caracteriza apenas pela aceleração, mas também por uma acentuada individualização, o que pode chegar aos limites de um individualismo cerrado, sem horizontes de encontro. Pelo menos, pode espreitar a tentação de um desenvolvimento em regime de solidão conquistada, no qual a felicidade pode traduzir-se na satisfação imediata e a própria necessidade de encontro seja atraiçoada e sufocada por apostas de anonimato e massificação. Na realidade, as nossas sociedades, sofisticadas a nível tecnológico, deparam-se com o fenómeno do individualismo, do hiperconforto sem confronto, da solidão por opção, do hedonismo como fonte de felicidade. O pré-encontro é marcado por esta realidade como facto. No capital prévio depara-se com este estigma, sendo hoje a educação interpessoal substituída por equipamento, o que pode constituir ameaça ao encontro como estrutura antropológica de base. A sofisticação dos equipamentos pode provocar uma hiperindividualização, o que seguramente transtorna o encontro. Volvidos 30 anos, a sombra do isolamento pôde provocar uma acentuada alienação, fustigada pela emergência de um Deus novo, o eu (ou self), enquadrado por um sistema que provocou o esquecimento da relação. A um período marcado pela realização no exterior, fora de si, sucedeu rapidamente, um outro marcado pela idolatria do interior, constituindo-se o “eu” como auto-referência revestida de sacralidade. O próprio fenómeno da “privatização do religioso” possui esta base no capital social que o enquadra. A preservação do eu, no conforto hedonista, pode traduzir uma idolatria insustentável enquanto isolamento e portanto amputação. Amputada da sua exterioridade, a interioridade pode ser doentia, reduzindo a si toda a realidade e fechando-se no santuário egolátrico sem expansão possível. Também esta é uma marca do pré-encontro. Trata-se de uma alienação subtil, que caracteriza muitos dos percursos do nosso tempo, fugindo a qualquer proposta de comunidade, admitindo somente a transcendência do “eu”. A vaga gnóstica é uma das sendas desta alienação. Pode-se ir mais longe neste diagnóstico do pré-encontro. A cultura envolvente, como capital-berço de cada um no desenvolvimento que vai protagonizando, é fortemente mediatizada. O ser humano, mulher ou homem, é hoje instigado, seduzido, de forma radical. Como ser naturalmente vocacionado para mais, é provocado de todos os lados, nascendo constantemente a outros apetites, no encontro com realidades que, no seu ambiente, se vão despertando pelo apetite. A comunicação à distância, maximizada pelo dispositivo tecnológico disponível, preenche o berço de apetites sempre novos insuspeitáveis. Como cultura de fruição constante, o contexto sócio-cultural envolvente é também de produção ameaçadora de novidade, fazendo emergir necessidades com a prévia criação da sua satisfação. A comunicação social de massa, integradora desta lógica, está implantada em qualquer lugar do planeta, activando constantemente desejos novos e, assim, inscrevendo cada um numa rota de desmedida vulnerabilidade. Ser de desejo, homem ou mulher, cada um usufrui de um mecanismo instigador que satisfaz produzindo e que inventa o desejo. É também aqui que se enraíza o desejo, como procura constante de outra coisa, esta muito próxima da questão turística que ocupa a nossa atenção. De facto, os Media constituem um poderoso poder que desenvolve desejos de mais, já que o planeta é grande e a vida terrena é demasiado curta para cumprir o programa da procura. O fenómeno complexo do turismo, inscrito na própria natureza viadora (viator) do ser humano e na sua condição peregrinante, conta com esta janela sobre o universo instalada no quotidiano mesmo isolado de cada um. Desde o Concílio Vaticano II particularmente, é notória a emergência de novas necessidades neste campo, a avaliar tão somente pela documentação produzida pelas instâncias de governo da Igreja, documentos, directório, cartas, alocuções, breves discursos, intervenções, simpósios, congressos, alusões de circunstância . De facto, o estilo pastoral da Igreja é uma prova evidente desta marca do pré-encontro. Como fundo de um turismo real crescente está a realidade de um turismo psicológico que aprofunda no ser humano esta procura incessante da novidade. O exótico, o diferente, o inabitual acontecem como realidade virtual num palco globalizado que é o mundo, sendo do ponto de vista real e geogrático o sinal de desigualdades e de dissimetrias. Se as sombras são espessas na realidade dada às gerações em desenvolvimento, elas aparecem de mãos dadas com a riqueza inegável que integra o legado que lhes é oferecido, como pré-encontro. Aquela diz respeito ao capital real disponível, aos meios ao alcance, às lições dos percursos já realizados, às notas de avaliação facilmente assimiladas e, sobretudo, à capacidade de criação de futuro, pelo desejo e pela expectativa. As próprias alterações no domínio das ofertas constituem oportunidades novas que impedem o adormecimento na instalação, promovendo o alerta constante de cada ser humano como ser a caminho, numa trajectória que lhe é própria na abertura ao futuro que vem. A época em que se vive é de não-repouso, de inquietude, de instabilidade, o que constitui positividade que acorda de tentações, de marasmo e de rotinas. A nível de pré-encontro, assiste-se a uma constante instigação baseada naquilo que poderá vir, nas novas hipóteses que a curto prazo poderão surgir, o que é alavanca contra a instalação, a acomodação e a paragem. Além disso, a conjugação dos factores do pré-encontro, afirma-se como instrumento mediador de um estado de alerta, de um estatuto de sentinela, de uma posição de vigilância, muita característicos do ser humano enquanto peregrino. O pré-encontro, enquanto capital cultural oferecido, não é sem Evangelho. Inscrito em inumeráveis sinais no contexto quotidiano de todos, o Evangelho não é só o património do mundo ocidental, mas está subjacente ao conjunto de buscas incessantes de toda a humanidade. Com uma história longa e documentada, desde o “crescente fértil”, o Evangelho marca indelével e definitivamente as culturas desde a Incarnação de Deus, mas está semeado de forma propedêutica nos passos de tantos milénios de antepassados. É desta riqueza inquietante do pré-encontro que é necessário não desistir, na certeza de que os seus vestígios são detectáveis em tantas formas de procura religiosa que deixam marcas desde há milénios. Também no Oriente, no Norte e no Sul há vestígios de uma reflexão e de encontros com o divino, o que são outros tantos caminhos pedagógicos que apontam para o Evangelho do Senhor Jesus. O património cristão não se confina ao território religioso do Cristianismo, mas abre-se às diferentes formas de experiência religiosa que marcam a evolução da humanidade. Este é um dado que se torna necessário equacionar no panorama religioso contemporâneo, o que permitirá o enraizamento de uma atitude de diálogo franco na busca comum de irmãos a braços com a fragilidade e mendigos do seu sentido. Entender as harmonias do encontro aparece como tarefa de todos, no espírito da peregrinação comum, sem hegemonias culturais nem avaliações precipitadas, mas na consciência de um património comum multifacetado que traduz a sede espiritual que atravessa todos os povos, sede que se compagina com a Boa Nova anunciada por Jesus. Como dado prévio a qualquer encontro há uma história santa, repleta de narrativas e de figuras, que, na nossa confissão de fé, atinge a plenitude na figura do homem-Deus. Era na mira desta figura singular que toda a aventura passada se foi realizando, como é à luz dela que se dá significado à aventura dos dois milénios últimos. E esta proposta da riqueza inesgotável do pré-encontro não é em nada redutora nem de supremacia arrogante. Trata-se, sim, de compreender a unidade do desejo humano e da sua expectativa traduzida em tantas buscas gravadas numa história multimilenar. É assim também que se pode entender a Bíblia como a narrativa sagrada de todas as aventuras desta sede inesgotável, revelando afinal que tudo corresponde a um chamamento original, que perpassa todas as páginas e que levou Agostinho de Hipona a este celebérrimo comentário:”fizeste-nos para ti, Senhor, e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em ti” . Como pré-encontro dos encontros possíveis está um enredo de encontros singulares, que se tornam paradigmáticos e totais na experiência do Verbo Incarnado. Os anúncios não pertencem somente às redes narrativas do tempo dos Patriarcas, dos Reis, ou dos Profetas. A sua trama inscreve-se também em tudo o que precede a aventura de Abraão, o que consolida o arco unitário de toda a humanidade no seu ponto mais alto e definitivo, Cristo, como Princípio e Fim. Este pano de fundo evangélico que atravessa a aventura de todas as gerações constitui um dado recebido, um dom permanentemente oferecido, que importa não descuidar na percepção do encontro como realidade contemporânea. A história santa que para o Evangelho aponta tece-se nos encontros religiosos de teor naturalista, no espanto e no pavor diante dos fenómenos naturais ou no susto provocado por acontecimentos. O encontro faz desenvolver a história santa, quando do medo contemplativo nascem interrogações que só mais tarde encontrarão resposta sensata. Com a história da salvação abre-se uma nova página de encontros, nos quais a percepção do além é cada vez mais direccionada, mas que deixa nas margens encontros de outro teor; uma tradição religiosa não esgota em si a riqueza deste processo humano de acesso à realidade divina, que se desenvolve em cadeia de encontros sucessivos. A história adensa-se e a percepção da precedência aparece com maior nitidez, até ao encontro definitivo de Deus com o homem no seu Verbo Incarnado. E n’Ele a esteira de encontros continua estendida, como esteira de acesso e de expansão de felicidade. O encontro abre a sede como fonte inesgotável, o que aparece na narrativa evangélica do encontro de Jesus com a Samaritana . Em Jesus, o encontro é de proximidade, de quebra de barreiras, em horizonte de fraternidade universal, derrubando o muro de separação entre inimigos num mesmo território e evidenciando, numa mulher de acesso proibido, o dom inesgotável da sede que faz ir mais longe . Se aqui o encontro é de teor simbólico, o encontro do calvário é de derrube universal, quando de braços estendidos, o perdão é o fruto do encontro com o Pai, manifestando a plenitude do Seu Amor: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” . Estes são encontros de plenitude, dos quais qualquer encontro de hoje se pode reclamar. Pertencem ao tecido cultural, ao pré-encontro de todos. II. ENCONTRO E DESENCONTRO Encontro. A sua experiência é universal, em todos os tempos, épocas ou lugares. Homens e mulheres, nos mais pequenos espaços de aldeias, nos territórios clánicos, nos grandes aglomerados urbanos, a sua vida tece-se de encontros. Encontros habituais, rapidamente transformados em rotinas, encontros desejados ou programados, encontros inesperados e até impostos e indesejados. O encontro é uma realidade antropológica sem a qual a vida não é nem se desenvolve. Pode acontecer no roteiro de uma preparação esmerada ao pormenor e também num simples desleixo de passatempo. Prevê-se, deseja e planifica-se ou impõe-se, suporta-se ou sofre-se. De uma forma ou de outra, não deixa de ser, de se instalar, de ficar e de gerar futuro. As trajectórias humanas são tecidas por ele, como companheiro incondicional, como fio secreto do próprio desenvolvimento. Aliás, aparece de forma simples e frágil, marcando secretamente a história de cada um, como se aquela não tivesse outras alternativas. Instala-se, modifica e cria novidade. Gera mais, melhor e provoca passagens. Altera, surpreende, instabiliza. Há cor, magia e sentimento. Provoca abertura, instiga, gera mais sonhos. Fecha, repara, retempera, equilibra e desequilibra, gera rupturas e provoca saltos. Contenta e descontenta. Cria energias. Abre horizontes de luz e carrega de sombras. Faz apetecer a esperança e desenvolve saudades. Encontro. O seu étimo impõe uma realidade não solitária. Revela o seu carácter de tríade, como ponto de partida. Há uma interioridade cujo dinamismo ou cuja acção se revelam com o outro. Na raiz, qualquer encontro não se faz no vazio, mas supõe alguém (enquanto interioridade) na relação com outrem. Eis a tríade: in, cum, alter. Seja num simples encontro da vida diária, por mais rotineiro que se tenha instalado, seja num encontro mundial, devidamente programado ao pormenor, a realidade de que se fala implica sujeitos distintos em aproximação e que, de forma mais ou menos explícita devido à circunstância, decidem agir em comum, estar diante do outro (ou dos outros), caminhar em relação a um sentido ou dirigir-se para um mesmo ponto, fazendo assim (de forma mais ou menos consciente) alguma descoberta. Qualquer encontro explicita, assim, a estrutura trinitária que, desde o início, integra o desenvolvimento humano: alguém, outrem e a sua superação (novidade da comunhão). Homem e mulher, os seres humanos, estão desde o início inscritos nesta estrutura triangular, que segundo a tradição cristã, aponta para o seu início no mistério da vida trinitária de Deus e para o seu fim como coroamento na Sua Glória. Não há encontro sem identidade. Pode esta não ter acordado radicalmente e o encontro acontece então como surpresa. Mesmo assim, a estrutura trinitária está presente. Quando se é surpreendido, o sujeito entra em alteração porque existe em uma certa forma. Então o encontro transforma, sugere consciência, activa os dinamismos de um “eu”, até adormecido. Se esta consciência é prévia, então a surpresa do encontro pode ser de maior enriquecimento, já que a pessoa está desperta, não esquecida de si. Por aqui se vê que qualquer encontro, como presente de interioridade, é revelação de si sob o modo da surpresa que gera. Não há encontro sem alguém que nele é protagonista, mesmo que a sua identidade seja fragmentada, dissipada ou perdida. Assim, qualquer encontro, para o sujeito é descoberta de algo para si ou em si, mesmo sem a finalização de o dizer. A interioridade de que se fala pode ser mais ou menos consciente, unitária ou fragmentada, mas sempre suposta para que o encontro aconteça. No caso da actividade turística, a pessoa enquanto interioridade está motivada para um percurso de mais, sujeita sempre às surpresas da natureza, do património, do quadro ecológico, das relações humanas, o que “reforça a construção harmoniosa da pessoa” , como o sugere o documento do Conselho Pontifício de 2001. Esta disposição potencia o encontro turístico como ocasião de investimento e de enriquecimento. Não há encontro sem alteridade. Aliás, é o jogo entre identidade e alteridade que dá ao encontro uma consistência real. É assim desde que há homem e mulher, sendo da presença do outro que emerge a primeira exclamação, como o evoca a narrativa poética das origens . Neste encontro primordial, depois de encontros propedêuticos com as outras formas criadas e diante das quais não há senão nomeação, o homem na surpresa exclama diante de um ser semelhante. A partir de então o encontro acontece como realidade reflexiva, de linguagem, de cultura. O outro passa a devolver a quem encontra a sua identidade. A narração das origens aponta, na trama deste primeiro encontro, para aquela realidade que falta, que se deseja encontrar, e que faz do outro semelhante. Aqui radica a originalidade da busca humana, na senda de encontros sucessivos: falta algo que só o outro devolve; a identidade é de certa forma incompleta sem o outro; é no seu encontro que a “plenitude” pode acontecer. A “costela” aparece na narrativa como elemento simbólico que ajuda a tomar consciência do estatuto viador de cada ser humano, do seu caminho a percorrer em busca do que lhe falta. A “exclamação” é o outro nome do encontro que surpreende. É aqui que radica, em meu entender, o carácter incontornável do encontro como lugar de realização humana: o outro provoca-me exclamação, devolvendo-me ao meu estatuto de ser necessitado, de peregrino do mais, de mendigo de uma alteridade total, que possa doar-me gratuitamente o que me falta. Turistas ou peregrinos, todos manifestam nos encontros sucessivos a importância de um outro, que não podem reter nem tornar seu, mas que é indispensável para a sua realização. O encontro é assim, também, lugar de transcendência, na busca que inscreve. O outro encontrado responde a necessidades por instantâneo, mas não extingue a sede de mais. Permanecendo como é, semelhante, dessedenta no momento, mas não extingue a busca, faz desejar mais; a sua identidade não é confiscável. Nunca o outro se torna meu. A necessidade permanece aberta. Mais uma vez aqui, o turismo em expansão e nas suas variadas formas, marca esta estrutura fundamental do ser humano, enquanto realidade aberta à transcendência. A experiência turística comprova que aquele que escolhe esta aventura programa sempre mais; o turista responde a uma certa necessidade permanente de sair, de ir mais além, de conhecer outros, dizendo a si mesmo que o que encontrou ainda não é a plenitude. Assim, a transcendência, para além de qualquer confissão religiosa, é uma marca estruturante de cada ser humano, que o próprio encontro revela no seu interior. As tradições religiosas acontecem como sistemas de cultura que tendem a nomear a própria transcendência, fazendo-a sua. São tanto mais válidas e autênticas quanto a preservam como transcendência. Em consequência, também a identidade do ser humano aparece na sua verdadeira autonomia responsável. É assim que a tradição judaico-cristã guardará o seu interesse irrecusável e aprofundará a sua missão como serviço a todo o ser humano, porquanto confessa a transcendência enquanto tal, como aquela realidade “que é”: “eu sou aquele que sou”, “eu sou, enviou-me a vós!” . Assim, numa missão de encontro, o ser humano aprofundará a sua identidade, tomando consciência da própria experiência como ser de transcendência. Não necessita de ficar pasmado, nem sobretudo parado, a “olhar para o céu”, como os apóstolos na Ascensão, mas procure caminhar de encontro em encontro, pois o “céu” neles está inscrito, fazendo sinal sempre que há encontro. O encontro é uma realidade pascal inscrita no processo humano. É na procura de renovação pessoal, do interesse que as coisas sugerem, da diferença que pertence ao outro, do conhecimento da diversidade, da apropriação de algo possível, do bem-estar, do repouso, que homens e mulheres se encontram. O Turismo é este fenómeno marcante do nosso tempo que revela à saciedade este dinamismo. O intercâmbio, o conhecimento, a cultura, o repouso contemplativo, a serenidade em espaços ecológicos de eleição, são nomes de uma passagem conseguida, de um salto na qualidade. Qualquer encontro tem esta marca, a da novidade conseguida por passagem, por transição, por Páscoa. É certo que poderá esta realidade nova alcançada ser enganosa, miragem, ilusão transitória, mas parecer à partida melhor, pelo menos como sedução. O ser humano não pretende involuir, mas ir mais longe. Quando no encontro espera a novidade, pode ser traído por um défice de conhecimento, por incúria prévia ou mesmo por ciladas de exploração. A força da passagem realiza-se num palco de iniquidade, onde o mal espreita e seduz. Se há Páscoa no encontro, há salto para uma realidade nova gratificante, para uma situação de mais humanidade. Mas a perversão pode espreitar e é lógico que se suspeite. O encontro preenche expectativas, devolve algum sentido, marca o itinerário da diferença alcançada, conhecida, amada. Na sua lógica de liberdade pode desviar da rota uma identidade. Pretendia-se ir mais longe, mas o resultado pode ser pernicioso. Se houve mais preenchimento, se aconteceu o dom, se houve avanço, a Páscoa foi positiva, gerou riqueza, no bem-estar e nos valores, aumentou o capital de luz e de energia. Por vezes, esta passagem provoca encontro que remete ao silêncio do ser. O silêncio é então a tradução mais eloquente do enamoramento e da pacificação, encontrando cada um as harmonias de si no acorde conseguido com todo o universo. O silêncio aparece como plataforma de acesso ao outro lado de si, à imagem discreta do ser onde tudo se inicia, onde o segredo envolve e a palavra é ouvida antes de ser pronunciada. O silêncio é uma das marcas da Páscoa que o encontro desenvolve. O silêncio “não é apenas uma certa modalidade do som, mas antes uma certa modalidade do sentido” . Há lugares que o reclamam e o impõem. Há outros que o criam e suscitam, tornando-se assim o silêncio intenso como que “a assinatura de um lugar” . Nas digressões turísticas, muitas vezes o silêncio surpreende, como se se tratasse de uma exclamação da alma. Frequentemente, da beleza insuspeitada de um lugar ou da frescura de uma pintura surge o silêncio, qual caminho imprevisto que conduz a si mesmo e à reconciliação com o mundo, qual “suspensão do tempo no qual se abre uma passagem que oferece ao homem a possibilidade de encontrar o seu lugar, de ganhar a paz” . O encontro pode tornar-se desencontro também. É naturalmente ocasião de conhecimento, de diálogo, de descoberta. Torna acessível uma realidade distante sustentando um enriquecimento mútuo de pessoas e de culturas, de espaços e de projectos. No sector turístico, o encontro revela-se profícuo não só porque suscita o contacto com obras culturais onde os sinais de Deus são eloquentes, onde a Sua providência e o Seu amor são traduzidos, mas também porque abre àquela escuta interna no coração de si mesmo onde a arte e a beleza deixam o seu eco . No âmbito da mobilidade e do contacto entre povos, os encontros potenciam a percepção de uma construção possível de um tecido social e cultural mais solidário e fraterno já que há provas bem visíveis da riqueza de um esforço de colaboração. Nasce-se assim para um outro estilo de vida, para comportamentos de convivência, de solidariedade e de altruísmo . Acorda-se também para alguns limites que desfazem tentações de prepotência e de exagerada confiança em si. A passagem por outros povos e por outros lugares indicia em cada homem e mulher a sua pequenez, ao conferir-lhe um estatuto de parceiro, fora do qual pouco consegue. Abre-o à diferença, à importância do entendimento e do diálogo com os outros, à riqueza da cooperação para a sobrevivência comum. Mas é risco também. Risco do imponderado, risco da asfixia, risco da manipulação, risco da exploração, risco mesmo da perversão de sentido. A realidade é maior que o seu entendimento e a preponderância rapidamente se pode desvirtuar em mal-estar, a precipitação em fracasso do eu e a pressa irreflectida em naufrágio das razões e da vida. O encontro é então desencontro, resvalando a estima para o insucesso, a descoberta para o erro e a tentação para o pecado que encerra na prisão. O desencontro desilude, o erro desencanta e o pecado enfraquece, mesmo de forma insensível. Há encontros de exploração que são ocasiões próprias para uma imersão no erro camuflado, que leva a naufrágios sem salvação possível. Na área do Turismo, são de todos conhecidos os desencontros que dão pelo nome de “experiências eróticas”, de “sexo com menores”, de “exploração económica”, de “venda de relações instáveis”, de experiências de inscrição em outros valores de comportamento, de comércio de “produtos tóxicos”. Trata-se do amplo risco da agressão, muitas vezes de forma desproporcionada. Os efeitos são então de índole patológica, desmontando sistemas de valores, destruindo personalidades, criando dependências e instalando obsessões que matam lentamente . A surpresa pode possuir variados nomes, sexo, droga, experiência, tentações, moda; o desencontro, porém, terá marcado o seu lugar no itinerário de um ser humano, o que fragiliza e empobrece a civilização de beleza e de bondade que, desde o início, marca o encontro entre os homens. Mas, marcado pela queda, todo o encontro é vulnerável. III. PÓS-ENCONTRO Do encontro abrem-se rotas. Uma é a rota de lucidez. A palavra encontro aponta também para um processo de luta, onde haverá vencedores e vencidos, e por isso, onde o conflito não é eliminado à partida, mas traduz a dimensão de queda de que o encontro é devedor. Pastoralmente, exigem-se atitudes lúcidas que saibam ponderar com realismo as oportunidades e os desvios e que incluam nos itinerários e roteiros as dificuldades maiores do conflito em causa. Encontrar os outros é também fazer face à sua desmedida, ao pecado inscrito na sua cultura civilizada, às ciladas escondidas nos produtos que oferecem. O turismo como serviço ao encontro entre os homens integrará esta coordenada de lucidez, detectando obstáculos, desmontando embalagens que camuflem a realidade, desmitificando lugares e produtos que aviltem a pessoa e ponham em risco a sua dignidade. A lucidez inicia-se em casa, antes da decisão do encontro com alguém diferente, deixando amadurecer em si a ideia de que a riqueza do encontro depende das partes em presença, mas supõe a riqueza e a dignidade daquele que parte. Também aqui se supõe um pouco de aritmética, como no amor: “É necessário ser dois; e para ser dois, é necessário ser um” . Quando do encontro pode advir a supressão ou a ruína de um, já não há encontro nem serviço. A lucidez necessária nasce em casa, no estudo do roteiro, na ponderação dos obstáculos, na escolha de alternativas, na constituição do apoio para emergências. A comunidade cristã poderá prestar uma colaboração imprescindível para a definição desta rota, apontando caminhos a seguir, disponibilizando notas de recomendação, oferecendo um caderno de pré-avisos dentro da lógica de servir o homem. Muitas vezes, a lucidez necessária não precisa de grandes símbolos, mas oferece-se em textos curtos que o turista ou peregrino apropria em momento de pausa. Esta rota de lucidez é um bom caminho pastoral, sobretudo quando presente de forma discreta nas breves notas de um património de visita obrigatória. Em certas circunstâncias não necessitará de uma confissão explícita de Cristo, já que para o dizer basta defender a dignidade de cada um, alertando para processos subtis que levariam ao seu desmoronamento. Não se trata tanto do exercício de um poder, forçando a liberdade, mas do serviço com autoridade ajudando cada um a ser ele mesmo . Este é discreto, como é discreta a lucidez em horizonte de fraternidade universal. Uma outra rota aberta é a do pensamento. Frequentemente, no âmbito pastoral, se cai no desperdício de soluções pragmáticas. Cai-se também no esquecimento da diferença. O que marca a singularidade do encontro é o facto de ele ser uma junção reflexiva, uma aproximação consciente, uma ocasião de pensamento e um acontecimento pensante. A rota mais favorável é a da orientação do pensamento, a da sua facilitação e do seu incremento com consequências. Como acontecimentos de proximidade e de fascínio entre homens e mulheres, os encontros são tanto mais quanto mais fazem pensar. Desde o Concílio, a par de iniciativas concretas no âmbito das Igrejas locais, tem a Igreja velado por esta diferença que cria a originalidade humana. A literatura disponível abunda. As orientações pastorais são precedidas de aprofundada reflexão que provoca itinerários novos nas mentalidades. O sector do Turismo é uma das provas. É com textos de qualidade e de densidade, onde a própria pessoa está em causa, que pode proceder-se a uma reviravolta de mentalidade. Não se trata de um processo simples e muito menos linear, mas de um processo longo que requer ponderação e paciência. Não se muda a realidade com soluções de superfície ou com regras ditadas a partir de cima. Muda-se sempre que se faz pensar. A pastoral do Turismo é um claro exemplo desta rota. “Acontecimento social do século”, como o definiu Paulo VI, o Turismo faz pensar e é porque o faz que muda . Quanto mais a Igreja souber fazer pensar mais estará a prestar um serviço autêntico às pessoas e com isso a provocar a conversão das mentalidades. Esta rota, a da promoção da reflexão, alicerça-se mais naquilo que de original tem o homem e menos na publicidade doentia dos males do século. Enquadra-se na rota a produção de literatura de qualidade, a todos os níveis, para que homens e mulheres, dos diferentes quadrantes culturais, tenham ao seu alcance meios adequados que lhes permitam ser mais, pensando. Influencia-se mais a mentalidade e a sua viragem com uma narrativa, um romance ou um conto sobre a dignidade humana, do que com um código deontológico, ou com um conjunto de normas que conta já com alguma aversão prévia, o que significa um conjunto de preconceitos tendentes à sua desmontagem. A Igreja tem muito a construir nesta área, vulgarizando textos de qualidade e tornando-os atractivos, acreditando que é a partir de dentro que se transforma. Cuidar do pensamento é cuidar da diferença antropológica. É esta a questão de hoje, quando muito da circunstância é de nivelamento ou até de redução do ser humano. Seja a actividade da Igreja centrada em ensinar a pensar como caminho propedêutico ao encontro da fé. Depois da tentação redutora de explicar Deus, de O desvendar e de O provar nas circunstâncias da história, ensine-se a pensar, cultivem-se itinerários catequéticos de reflexão, e Deus, sem necessidade de prova, acontecerá nos encontros mais secretos de cada ser humano. Ser lúdico e de fruição, o homem é ser de reflexão. Cultivando-se como tal, encontrará o seu princípio e o seu destino. O verdadeiro sentido que mendiga pressupõe esta actividade, o pensamento. Nele encontrará o seu caminho, o mais original. Depois do encontro, cultive-se a rota da estética. Eloquente é a cascata que envolve os homens no ruído cósmico inalterável. Límpido é o vitral que os faz mergulhar na sinfonia das cores. Doce é a voz do Convento que o faz acertar com o ritmo natural do coração. Delgada é a agulha da Catedral gótica que o faz comungar com a imensidade ascendente do espaço. Repousante é a luz do românico que o faz entrar em si mesmo, em sintonia com a alma. Forte é o bosque que lhe confere solidez e que o mantém em referência de certeza. Simples é a tenda que o deixa sentir a brisa e respirar o vento que vem de longe. “A beleza da tua casa” o surpreende; a fragilidade da chama o atrai; o odor do incenso toca-lhe na alma. O acolhimento funciona com alma, já que é dela que nasce a sua beleza. O movimento faz andar, quando se ouve o rumor de passos que procuram. O som, a cor, a luz e o sopro são as qualidades de uma estética, que funciona e provoca, que interroga e incita ao caminho. O Encontro só será definitivo quando a verdade e o amor se conjugam. Então haverá a festa, como celebração do eu e do outro, sem confusão, na comunhão que os faz ser ambos. APOIO BIBLIOGRÁFICO BEZANÇON, Jean-Noel – Dieu n’est pas solitaire: la Trinité dans la vie des chrétiens. Paris : Desclée de Brouwer, 1999. BRUNIN, Jean-Luc – « Accueillir l’étranger ». In Précis de Théologie Pratique. Bruxelas/Montréal : Lumen Vitae/Novalis, 2004, 797-816. CONSEIL PONTIFICAL POUR LA PASTORALE DES MIGRANTS – Orientations pour la Pastorale du Tourisme. Vaticano : 29 Junho 2001. DIRECTÓRIO GERAL PARA A PASTORAL DO TURISMO – Vaticano : 27 Março 1969. GESCHÉ, Adolphe – L’homme. Paris: Cerf, 1993. LEBRETON, David – Du Silence. Paris : Editions Metailié, 1997. LETTERA alle Conferenze Episcopali « Chiesa e Mobilita Umana ». Vaticano : 4.5.1978. SALOMÉ, Jacques – Vivre avec foi: chaque jour… la vie. Canadá : Les éditions de l’homme, 2003. J. Silva Lima Junho 2004


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