Dossier

Omissão ridícula

Francisco Sarsfield Cabral
...

Francisco Sarsfield Cabral, Director de Informação da RR

Uma União Europeia com 25 ou mais Estados membros não pode funcionar com regras que ainda são, na sua maior parte, as que vigoravam quando a então chamada Comunidade Económica Europeia nasceu, com seis países, há 45 anos. Por isso era inevitável que o actual alargamento da UE – o maior de sempre – levasse a uma reforma das instituições comunitárias, sob pena de elas paralisarem. Mas a UE atrasou-se nessa mudança. Enquanto exigia aos países do Centro e do Leste da Europa profundas reformas, certamente necessárias para adaptar sociedades e economias vindas de décadas de comunismo às regras europeias, ela própria tardou a reformar-se. Daí a situação algo bizarra de dez candidatos à UE terem assinado o tratado de adesão... antes de conhecerem ao certo as normas do clube em que estão a entrar. A Convenção presidida por Giscard d’Estaing apresentou um projecto de constituição europeia – melhor dito, de um tratado constitucional – que, a partir de Outubro, os governos dos países da UE vão usar como base de trabalho para a redacção do texto final. Há certamente muito de positivo no trabalho da Convenção, dirigida de modo algo autoritário pelo ex-presidente francês. Codifica-se e simplifica-se muita matéria dispersa por tratados sucessivos. E desenha-se uma razoável reforma das instituições, se for corrigida de alguns desequilíbrios – como o de aumentar o risco de a UE passar a ser, na prática, dirigida por um directório de grandes países, desvalorizando o papel da Comissão, a natural aliada dos pequenos Estados membros. Num ponto a Convenção falhou: não conseguiu interessar os europeus nas suas tarefas. As opiniões públicas dos países da UE alhearam-se das discussões institucionais, o que bem se compreende. É certo que estava, e está, em jogo o poder dentro da União. Mas a complexidade destas matérias afasta o comum dos mortais. Um alheamento que pode e deve ser ultrapassado agora, se os governos da UE souberem colocar as questões, não no mero e obscuro plano da engenharia institucional, mas no terreno político. A UE desde o início que é um projecto político, o qual precisa hoje de ser actualizado e clarificado. E não só por causa do alargamento – basta pensar na crise europeia provocada pela guerra no Iraque. Um ponto levantou, e com razão, alguma celeuma na opinião pública: a omissão no retórico preâmbulo do projecto de constituição de uma referência explícita ao cristianismo como uma das raízes da civilização europeia. Fala-se ali das religiões, em geral. O cristianismo brilha pela ausência. É uma omissão ridícula, porque o papel do cristinianismo na formação da Europa não é uma questão ideológica, mas de pura verdade histórica. Não é por acaso que muitos não crentes – como, entre nós, o agnóstico José Pacheco Pereira – criticaram asperamente essa falha. É uma simples questão de honestidade intelectual, que surge apenas porque ainda há quem confunda a indispensável laicidade das instituições europeias (como a de quaisquer instituições políticas) com um agressivo laicismo, que pretende excluir do espaço público a dimensão religiosa do homem e da sociedade, remetendo-a para a estrita esfera individual e privada. Mas ir ao ponto de ignorar factos históricos evidentes é, de facto, demais. Quatro países – Portugal, Espanha, Itália e Polónia - protestaram na cimeira de Salónica contra esta omissão facciosa. Nem justificá-la com a possível reacção islâmica tem sentido: porque não reconhecer, também, a contribuição – decerto mais limitada do que a do cristianismo – da cultura islâmica na Europa medieval, por exemplo no acesso à obra de Aristóteles? Aliás, os que não querem referir o cristianismo na constituição da UE são, em larga medida, os mesmos que se opõem a que as alunas muçulmanas usem o véu nas escolas públicas europeias. Esperemos que o erro seja corrigido. Até por respeito para com alguns grandes cristãos fundadores do projecto europeu, como de Gasperi, Adenauer ou Robert Schuman – este em vias de beatificação pelo Vaticano. Francisco Sarsfield Cabral, Dir. Informação RR


Europa