Dossier

Onde os nossos olhos, aí o nosso coração

Micael Pereira
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Micael Pereira - Professor UCP

Onde os nossos olhos, aí o nosso coração Seja a realidade qual for, hoje como sempre, vivemos e actuamos a partir das imagens que conhecemos. Tenhamos os princípios que tivermos, precisamos de actuar dentro de um contexto concreto que sirva de base aos nossos juízos e decisões. É através das imagens que conhecemos esse contexto, que enquanto circunstância e ambiente fundamenta o que queremos fazer e em grande parte, bem mais do que parece, nos proporciona igualmente as razões de viver. Vivendo em espaços cada vez mais extensos, com maior densidade, mais complexos, as imagens em que nos apoiamos deixaram de ser elaboradas só por nós a partir de factos que tenhamos presenciado. O espaço em que vivemos, as pessoas, a realidade a que nos referimos, é tão vasta que temos necessariamente de nos apoiar em imagens também elaboradas por outros; deixámos em grande parte de conhecer o nosso próprio mundo e a realidade em primeira mão. São em grande parte os outros quem constrói o contexto da nossa própria vida. A cultura da morte vê tudo de modo negativo Às imagens nos agarramos hoje como a um tronco; somos em parte camaleões. Sem querer fazemos nossas as cores do que vemos e a realidade tende a acompanhar essas mesmas imagens. Também neste sentido a realidade é cada vez mais virtual. Porque as imagens são cada vez mais fáceis de trabalhar e se tornam mais atractivas embrenhamo-nos cada vez mais no sensacional, no que desperta a sensibilidade e a emoção. O que é sensacional pode ser excelente, estimulante, renovador. Acabamos porém por preferir o que é catastrófico, doloroso, o que inspira piedade, talvez porque precisemos de dar voz ao que nos aflige por dentro. Com o drama e desgraça alheias exorcizamos os medos que estão dentro de nós: centramo-nos no mal dos outros que sempre é mais fácil de suportar que a ansiedade própria. É assim que não só o que é violento, mau, chocante facilmente se torna notícia, como se procura insistentemente descobrir o que possa vir a correr mal. Acaba-se por ter prazer em prever horizontes de catástrofe por vezes para nós, para os nossos adversários, para os que consideramos fracos e desconhecidos. Em quantas mesas, não só de café, saboreamos por antecipação tudo quanto irá correr mal, apiedando-nos das vítimas das desgraças que se anunciam! É que além do mais temos bom coração! Ver o mundo com um horizonte negro não só inspira muitos moralismos, como parece reconfortar quem não aceita os seus riscos e limitações. Escandalizamo-nos com o mal e corrupção, receamos pela nossa segurança e pelo futuro, avidamente queremos conhecer todos os processos escandalosos que nos possam chocar. Fantasiamos ser os justiceiros ou as vítimas do mundo podre que nos envolve, sem nos apercebermos de que assim só conseguimos desencadear processos de desconfiança e de destruição em que nós próprios nos deixamos necessariamente envolver. Também somos muito pessimistas Há povos que pelas suas grandezas e pequenez vão longe neste negativismo. Nós, portugueses, somos um desses povos. Ecuménicos como sempre fomos, habituámo-nos a que tudo o que há de grande se passe lá fora, nesse outro imenso país a que chamamos estrangeiro. Lá é que tudo vale a pena! Por cá, vivemos numa terra pequenina, agradável, mas que amesquinhamos na primeira ocasião. Por cá vemos os nossos defeitos, por cá nos parece que tudo corre mal e nada vale a pena. Continuamos a dar ouvidos a velhos do Restelo que só agoiram fracassos e decepções. Não admira que tenhamos tantas vezes o ar macambúzio de quem está mal com a vida, de quem não se salva nem se deixa salvar. Conhecemos a vida dos que vivem imediatamente à nossa volta, mas dela quantas vezes só fixamos o que correu mal, os fracassos, as doenças, as traições, o infortúnio. Conhecemos o currículo negativo dos outros, prevemos para eles o pior. As costas dos outros estão sempre na nossa palavra profundamente manchadas; vemo-nos rodeados de incompetentes, de rivais, de quem vive “à má fé”. Como se pode ter esperança vivendo num contexto em que só sabemos realçar o mal e a falsidade? Rodeados de visões catastróficas cuidadosamente cultivadas em termos de pós-modernidade e de postura nacional, sempre de óculos escuros que nos proíbem a claridade da vida, construímos uma realidade que se torna efectivamente triste. Cultura da morte, cultura da vida A esta cultura da morte, precisamos de opor a cultura da vida. Esta escolha é hoje fundamental. Precisamos de que nos caiam dos olhos as escamas que nos impedem de ver a luz; precisamos de rejuvenescer, sem falsos optimismos, mas com a alegria e coragem de viver. Ver o que está bem, falar do que vale a pena, procurar a alegria, olhar para o lado positivo da realidade, é criar um ambiente em que a vida pode crescer. Não será à custa de demonstrar o mal, que o bem encontrará clima em que possa desenvolver-se. É a imagem do bem, é a imagem da beleza que nos pode estimular para que a vida se renove. Toda a realidade tem uma face estimulante, sugestiva, criadora. Se vivermos sem falsas nostalgias de grandezas passadas, se não nos sentirmos cercados por uma realidade que só sabemos ver como adversa, criaremos mais facilmente condições para viver. Precisamos de não ter medo da felicidade e de não nos rirmos com sofisticado ar superior e desenganado face a quem tem a simplicidade de querer ser feliz. Ser feliz é capaz de não chegar como ideal de uma vida, mas é uma condição indispensável para vida de todos. Como pode desdenhar a felicidade, quem anseia pela felicidade eterna? Há contrastes demasiadamente acentuados entre o “ vale de lágrimas” actual e a bem-aventurança futura. A cruz dá quotidianamente voz à dor, mas desabrocha na ressurreição. Estar para além da dor, senti-la mas ser capaz de ir mais além, procurar o que é bem, beleza, felicidade, é criar o contexto em que pode vir a acontecer o que valha a pena viver. Micael Pereira Professor UCP


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