É certamente consensual o facto de a recém-terminada visita de Bento XVI à Turquia ter sido uma das mais complicadas viagens de qualquer Papa. Eu diria melhor: uma das mais complexas. Sobre as complicações políticas e de segurança, não me compete falar. Falarei brevemente da sua complexidade, que se deve sobretudo aos seus múltiplos significados, dos quais destaco: o significado ecuménico, o significado religioso, o significado cultural e o significado político-antropológico.
O primeiro aspecto desta visita foi, sem dúvida, eclesiológico. Tratou-se de ir ao encontro das Igrejas ortodoxas, simbolizadas no patriarcado que protagonizou a divisão da Igreja entre oriente e ocidente. Entre muitos e complexos factores, a divisão teve como causa próxima o conflito entre a Igreja de Constantinopla e a Igreja de Roma. Por isso, o facto de o bispo de Roma, em representação do ocidente católico latino, ter ido visitar o patriarca de Constantinopla, e não apenas de ter esperado a sua visita, é um passo de enorme significado na aproximação das duas grandes tradições eclesiais. E o facto de ter dado esse passo, mesmo no meio de tantas ameaças, tornou a visita ainda mais significativa.
O segundo aspecto, mais trabalhado pela comunicação social, prende-se com o diálogo com o mundo islâmico. É certo que o caminho dialogante já vinha a ser proposto por anteriores papas, sobretudo por João Paulo II, e praticado em alguns locais do globo - como em África - mas é sempre difícil o real encontro, sobretudo no interior de países de maioria muçulmana. Esta foi uma iniciativa que, embora sem acções espectaculares, não deixou de ser significativa. Tanto mais, quanto as relações se tinham azedado com o recente conflito sobre declarações de Bento XVI. Assim, o encontro possível, sobretudo na visita a uma mesquita e na oração aí praticada, adquire maior autenticidade, não se limitando a ser número de programa, para construção de aparências. De qualquer modo, também se tornou visível como não é simples a aproximação entre duas tradições religiosas com tamanhas diferenças e com um passado tão conflituoso.
Ora é em relação a esse passado, prolongado no nosso presente, que esta visita assume forte significado cultural. É que a Turquia sempre foi um país de transição ou passagem cultural: entre o mundo europeu e o mundo árabe, com a sua abertura para a Ásia e parte da África. Ligados a um e a outro, de forma mais ou menos clara, encontra-se o cristianismo e o islamismo, com todos os seus elementos também culturais. Ora, os espaços de transição - como todas as fronteiras - são sempre ambiguamente espaços de encontros férteis e de conflitos mortais. A capacidade de lidar com os segundos para manter e promover os primeiros é o desafio permanente desses pontos de charneira. O momento actual exige a exploração dessa ambivalência, para resolver o confronto em encontro. Não há palco melhor, entre nós, do que um país de fronteira. Mas a ferida está ainda bem aberta. É que a Turquia deve ter sido, até agora, mais terreno de confronto do que de encontro, se nos referirmos aos dois mundos que aí confluem - ou que poderiam confluir, uma vez que, na actualidade, parecem longe dessa confluência, assim como longe têm estado, nos últimos séculos.
É neste ponto que podemos vislumbrar mais um elemento na significativa viagem do Papa. Aparentemente, o mundo "europeu" e a sua tradição "humanista" estariam representados na Turquia pela laicidade do estado - desconhecida, em geral, no mundo Árabe, pelo menos do ponto de vista prático. Mas o certo é que a laicidade do estado turco é, de certo modo, simplesmente laicismo, o que significa perversão da correcta noção europeia de laicidade. De facto, esta assenta na ideia fundamental de liberdade pessoal, mesmo do ponto de vista religioso. A sua perversão em laicismo - frequentemente praticada por muitos estados europeus, a começar pela França - acaba por liquidar essa liberdade, de modo mais ou menos explícito. Neste contexto, jogam-se importantes perspectivas antropológicas e mesmo políticas, que não podem ser ignoradas na construção de uma humanidade pacífica e justa. Muitos equívocos ou, pelo menos, muitas ambiguidades precisam de ser desfeitas.
É certo que uma viagem de um Papa não resolve tudo - ou pouco resolverá, na prática. Mas possui o condão de nos colocar - a nós, a denominada "opinião pública" - perante realidades que devem constituir motivo do investimento quotidiano. Realidades que precisam de nos ser recordadas, pois são frequentemente silenciadas ou colocadas na sombra, na azáfama quase inútil do nosso quotidiano demasiado barulhento. Esse pode ser o principal fruto desta viagem.
João Duque,
Secretário da Comissão Episcopal da Doutrina da Fé e Ecumenismo