Dossier

Por um choque cívico

Hermínio Rico
...

Hermínio Rico SJ, Director da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura

“O primeiro dever dos cristãos é a participação responsável. Que ninguém se esconda por detrás de desculpas habituais”. É assim que o Conselho permanente da Conferência Episcopal Portuguesa, no seu Comunicado de 14 de Dezembro de 2004, sublinha a obrigação de não fugir à escolha política, mesmo “na certeza de que não há soluções perfeitas, nem definitivas”. Por isso é que se trata duma escolha, dum exercício de preferência reflectida. O objectivo – a promoção do maior bem comum numa sociedade justa e fraterna – envolve sempre muitos níveis de complexidade, justificando que diferentes opções finais possam ser identicamente legítimas, desde que movidas por discer-nimentos de igual honestidade cristã. As divergências virão de diferentes hierar-quizações dos valores em jogo ou ponderações distintas dos critérios de julgamento. Quais devem ser, então, os critérios para realizar este discernimento? O mesmo comunicado apresenta-os duma forma genérica: “temos todos o dever de nos esclarecermos crite-riosamente, passando para além do discurso eleitoralista e apreciando as soluções objectivas que nos são propostas para o Governo da Nação. Para tal, importa avaliar da sua justiça, da sua viabilidade, da sua consonância com os princípios da dignidade humana, do respeito pela vida, da dimensão social que todas as políticas devem ter. Para os cristãos, o critério de avaliação é o Evangelho e a doutrina social da Igreja.” O novo Compêndio da Doutrina Social da Igreja resume o seu objectivo orientador na fórmula: “um humanismo integral e solidário”. Por um lado, reafirma a centralidade dada à pessoa humana, ser sempre social, com direito a um desenvolvimento integral em todas as dimensões do seu viver (económica, social, familiar, cultural e espiritual). Por outro, junta-lhe as exigências da justiça e da solidariedade, que se concretizam na atenção primordial que deve ser prestada aos interesses dos mais desfavo-recidos. Um humanismo que promova a dignidade de toda a pessoa e da pessoa toda. Temos, assim, o critério fundamental para avaliar cada proposta política: como é que ela defende e promove o bem integral das pessoas, em especial os interesses daquelas que estão, na nossa sociedade, mais desprotegidas? No nosso estádio de desenvolvimento, as limitações económico-financeiras globais são ainda determinantes para a condição de injustiça em que vive uma boa parte da população: ausência de emprego, impossibilidade de satisfação de necessidades básicas e de acesso a serviços sociais com prontidão e qualidade, falta de horizontes de desenvolvimento pessoal. Em nome dos muitos ainda excluídos, é preciso produzir mais riqueza, aproveitar muito melhor a que já produzimos e distribuí-la de modo mais equitativo, dando preferência a quem mais precisa. No entanto, tem-se tornado evidente ultimamente que muitos dos obstáculos a um maior sucesso económico da nossa sociedade, condição para uma maior justiça social, dependem directamente de hábitos culturais e sociais de carácter individualista e egoísta que, além de pouco honestos, são duplamente injustos: não só excluem à partida os mais desprotegidos que, por serem por definição excluídos, não podem lançar mão dos mesmos expedientes, como, ao diminuírem e desviarem o que devia enriquecer o bem comum, prejudicam quem mais dependente está do apoio da sociedade. Incluem-se aqui comportamentos e práticas como: a falta duma ética e exigência no trabalho (com a consequente baixa de produtividade), a desonestidade fiscal generalizada tida como normal, o recurso sistemático a pequenas influências, as típicas “cunhas”, e a pequena e grande corrupção, a busca sistemática do aproveitamento imediato em detrimento da aposta no longo prazo sustentável, etc., até chegar à falta de pontualidade que tanto prejudica a eficiência. Ao mesmo tempo, tem crescido a capacidade de interesses corporativos manipularem ou bloquearem reformas para seu próprio ganho. O desinteresse pelo bem comum, substituído pelo egoísmo seja individualista seja corporativista, tem crescido numa cultura que cada vez reivindica mais direitos e se esquece dos deveres e responsabilidades. Por imperativos também de justiça, e em nome dos excluídos, daqueles que não têm ao seu alcance os meios pelos quais muito se tem jogado a progressão económica e social das classes mais beneficiadas, é urgente um “choque cívico” – uma mudança de hábitos no sentido da exigência e do rigor. Mais do que promessas de atraente facilidade mas de viabilidade dúbia, o que se deve valorizar é a vontade e a coragem para dirigir a sociedade pelos caminhos da responsabilização, do empenho, da determinação e do sacrifício dos interesses próprios imediatos a favor dum bem comum duradouro mais justo e solidário. Mas este critério de julgamento não pode ser apenas passivo. Como diz o comunicado citado acima, ao dever de escolher as propostas que suscitam mais esperança tem que estar associado o empenho em contribuir para a sua implementação: “votar é escolher caminhos e escolher é comprometer-se generosamente na sua concretização.” As raízes culturais, de mentalidade e de maus hábitos socialmente pouco sancionados que estão na origem de muitos dos problemas que agora politicamente é preciso enfrentar concernem à prática dos políticos, certamente, mas responsabilizam igualmente toda a sociedade. O dever de não se esconder na escolha prolonga-se no dever de participar, de se envolver. Para além de ser difícil e complicado, pode revelar-se também algo incómodo. Aliás, provavelmente, só escolherá duma forma recta quem avalia a situação e as propostas disponíveis a partir duma atitude pessoal de disponibilidade para o comprometimento com a construção do bem comum, quem é capaz de se colocar fora do círculo restrito dos interesses pessoais e do seu grupo social e olha para a realidade pela perspectiva do mais pobre, daquele que está excluído, que ninguém protege e corre o risco de ser apenas a vítima, directa ou indirecta, do “progresso” de alguns. Hermínio Rico SJ, Director da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura


Igreja/Política