Dossier

Reconciliação e perdão, sempre

Rita Cardoso
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“É preciosa aos olhos de Deus, a morte dos seus amigos”. Foi com estas palavras da Bíblia que o irmão François começou a oração à meia-noite, poucas horas depois da trágica morte do irmão Roger. Nesta altura nenhum de nós conseguia perceber ainda o que se tinha passado, e muito menos porquê… Uma das coisas que nunca conseguiremos apagar da nossa memória foi o grito de terror que cortou o silêncio da melodia, e nos colocou o coração aos pulos, a tremer, e as lágrimas a deslizar, ainda sem termos a noção do que tinha realmente acontecido. Que acto tresloucado tinha sido aquele, que motivos poderia alguém ter para tirar assim a vida de forma tão desumana a um velhinho de olhos doces e sorriso de criança? Logo ele, que tinha dedicado toda a sua vida ao serviço dos outros e cujo horizonte era o entendimento, o reencontro com o outro e a vida em comunhão. Não entendemos na altura, e agora passadas 3 semanas ainda temos dificuldades em aceitar o que se passou… No entanto, e apesar de toda a tristeza que sentimos, testemunhámos na Igreja da Reconciliação aquilo a que podemos chamar o milagre da Ressurreição. No meio de uma dor dilacerante, os irmãos da comunidade continuaram a cantar “Laudate Omnegentes “, em acção de graças ao irmão Roger. Naquele momento desceu sobre nós a paz de Deus e isso confortou os nossos corações. “Por mais radical que seja o mal, não é tão profundo como a bondade”. É aqui que reside a chave de tudo. A violência gratuita, a violência cega, apenas a violência como expressão do mal não pode fazer-nos esquecer a bondade e o bem”. Foi esta serenidade e força interior demonstrada pelos irmãos que nos abriu uma janela de esperança e permitiu que não perdêssemos a confiança em Taizé e tudo o que aquele lugar significa. Como disse o já saudoso João Paulo II: ” Passa-se por Taizé como se passa perto de uma fonte. O viajante pára, mata a sede e continua o seu caminho. Os irmãos da comunidade não querem deter-vos. Querem, na oração e no silêncio, permitir-vos que bebais a água viva prometida por Cristo, que conheçais a sua alegria, que reconheçais a sua presença, que respondais ao seu chamamento, e depois que torneis a partir para dar testemunho do seu amor e servir os vossos irmãos nas vossas paróquias, nas vossas cidades e aldeias, escolas, universidades e em todos os vossos locais de trabalho”. É com esta responsabilidade que saímos de Taizé, com a missão de não deixar desaparecer o espírito de Taizé, de simplicidade e comunhão, cultivada ao longo de décadas pelo irmão Roger. Nas suas próprias palavras: “é preciso não parar no caminho”. Taizé é, de facto, muito mais do que uma semana com os amigos, é um sítio onde vamos continuamente buscar forças para enfrentar as dificuldades de todos os dias e a inspiração para colocar os dons de Deus ao serviço dos outros. É uma semana de oração em comunidade, que junta pessoas de tantos países e culturas e de famílias cristãs diferentes e ao mesmo tempo tão próximas. Será difícil encontrarmos um outro lugar que comporte tamanha heterogenei-dade e simultaneamente seja tão homogéneo. Vive-se assim o verdadeiro ecumenismo. Taizé sempre foi um lugar de confiança, união e alegria. Agora é também um lugar de esperança, esperança de que a morte do irmão Roger não tenha sido em vão, e que o seu legado de reconciliação e bondade não seja esquecido. Não foi fácil viver aquela semana em Taizé, fomos diversas vezes assaltados por dúvidas, medos e em muitas ocasiões vimos a nossa confiança fraquejar. Nada que já tivéssemos vivido na vida nos poderia preparar para aquilo que vimos, sentimos e continuamos a sentir. De certa forma, entrámos na História, pois Deus deu-nos a oportunidade de testemunhar este acto hediondo, comprometendo-nos ao mesmo tempo a não deixar que Taizé seja esquecido. É esta a nossa missão que temos de saber potenciar ao serviço dos outros, na nossa comunidade. Da maneira mais difícil, Deus deu-nos uma lição de humildade e entrega total a uma causa. Naquele momento vislumbramos algo parecido com o que Jesus Cristo passou. O irmão Roger morreu, no seio da sua bem amada comunidade, em oração e rodeado por muitos jovens em quem sempre depositou a sua confiança. No seu último livro publicado há apenas um mês, diz: “Quanto a mim iria até ao fim do mundo se pudesse fazê-lo, para afirmar e voltar a afirmar a minha confiança nas jovens gerações”. É por isso que sabemos que Taizé não termina aqui. Nos nossos corações e de todos aqueles que partilharam à distância a nossa dor fica a certeza de que há ainda muito caminho por percorrer. E percorrê-lo-emos juntos, empenhados e iluminados pela presença do irmão Roger. Deixámos Taizé tranquilamente, como aliás tentámos viver toda a semana depois do que aconteceu. Seria assim que o irmão Roger teria querido. Depois da sempre comovente oração da luz na véspera da nossa partida, conseguimo-nos reconciliar connosco próprios, com o lugar e em gestos tão simbólicos como “passar a luz” a quem está ao nosso lado na oração, percebemos que a nossa confiança se vai fortalecendo e que vamos ter a força necessária para enfrentar novas etapas da nossa caminhada. Nunca saberemos por que tudo isto aconteceu, mas com o passar do tempo saberemos por que quis Deus que presenciássemos tal coisa. O primeiro passo para podermos recomeçar é perdoar a autora deste acto tresloucado. Foi isso mesmo que, nas palavras do irmão Alois, fizeram os irmãos da comunidade no discurso tocante na despedida ao irmão Roger: “Em face do mal a bondade do coração é uma realidade vulnerável. Uma vez que o irmão Roger não desejava que se pronunciassem muitas palavras nas igrejas, gostava de terminar com uma oração.: ”Deus de bondade, nós confiamos ao teu perdão Luminita Solcan que, num acto doente, pôs fim à vida do nosso irmão Roger. Com Cristo sobre a cruz dizemos-te: perdoa-lhe Pai por que ela não sabe o que fez “. É esta a primeira lição que devemos retirar daqui: A lição da reconciliação e do perdão. O irmão Roger estará sempre presente nas nossas orações e pedimos que através dele tenhamos a força para que as nossas aspirações à paz e à confiança sejam como as estrelas, pequenas luzes a iluminar a noite. “Através de uma oração muito simples podemos pressentir que nunca estamos sós: o Espírito Santo é em nós o amparo de uma comunhão com Deus, não apenas por um instante, mas até à vida que não tem fim”. Rita Cardoso (do Grupo de Jovens de Coimbra, presente em Taizé)


Taizé