Dossier

Reflexão sobre a Concordata

D. Eurico Dias Nogueira
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Comentário de D. Eurico Dias Nogueira, Arcebispo Primaz Emérito

1. A Concordata vigente em Portugal tem estado no pelourinho, nos últimos tempos. Como geralmente sucede em torno de qualquer tema controverso, também aqui surgem três posições: abolição, por inconstitucional e anacrónica; manutenção integral, por inteiramente legítima e actual, mesmo que alguma disposição se torne inaplicável; aceitação, com as alterações consideradas necessárias ou convenientes. A primeira não merece atenção, pelo seu radicalismo, de índole jacobina, desrespeitador da cultura e identidade do País, bem como da própria liberdade dos cidadãos. A segunda situa-se na linha de um conservadorismo imobilista, sempre desconfiado de qualquer mudança e arejamento de pessoas e instituições. Resta a terceira opção, como a mais realista e sensata. 2. Uma concordata é o meio normal e mais adequado para definir o relacionamento de um Estado com a Igreja Católica, quando esta ocupa, na população que aquele representa, uma posição de relevo, tornando-se bem visível. É que o catolicismo assumiu, ao longo da sua história iniciada no primeiro Pentecostes cristão, uma forma institucional, com organização social, clara e estruturada. Daí que tenha surgido um relacionamento com os Estados, regido pelo Direito Internacional Público, quando este começou a ser formulado. As Concordatas e relações diplomáticas constituem disso a melhor prova. Isto não pode ser ignorado, pese embora aos ideólogos do ateísmo e aos alérgicos a qualquer factor religioso. Se é certo que nunca faltaram, mostram-se particularmente activos nos tempos actuais, embora com reduzida repercussão na generalidade da população: o seu objectivo é sobretudo amesquinhar a imagem e apoucar o papel da Igreja. 3. A Concordata define-se como uma convenção firmada em pacto público, entre a Igreja e a sociedade civil, para ordenar as mútuas relações, fixando normas relativas a matérias que interessam a ambas as Partes contratantes. Ao longo dos séculos, tais documentos, regidos pelo Direito Internacional, aparecem com variadas designações: Convenção, Tratado, Concórdia, Pacto, Acordo, mas sobretudo Concordata. Equivalem-se, sendo irrelevante a sua diversidade. É bem conhecida a Concordata de Worms, depois da famosa "Questão das Investiduras", em 1122, entre o Papa Calisto II e o Imperador Henrique V. Tornaram-se frequentes nos tempos modernos, por serem consideradas instrumentos adequados ao bom entendimento, prevenindo atritos, e melhor cooperação entre as duas Entidades, assegurando a liberdade e independência mútuas, nas respectivas esferas de actuação. Só no pontificado de Pio XI (1922-39), foram concluídas duas dezenas de Concordatas. No ano findo (1999) foram assinados três Acordos desta índole, entre a Santa Sé e outros tantos Estados. Nestes dias (15-02) concluiu-se outro com o ainda embrionário Estado da Palestina. Os sujeitos da relação jurídica concordatária são, por um lado, o Chefe de Estado em representação deste e, pelo outro, o Sumo Pontífice, na qualidade de representante supremo da Igreja Católica, e não como soberano da Cidade do Vaticano. Normalmente é apenas a Igreja Católica que celebra Pactos deste género; mas nada impede que o Estado faça o mesmo com outras confissões religiosas, se elas assumirem uma organização constitucional pública, que lhes dê visibilidade e fixe órgãos de poder adequados. 4. Em Portugal as concordatas contam-se já por uma dezena, desde a primeira, negociada entre o Rei D. Dinis e a Igreja, de início representada pelos Bispos, mas logo aprovada pelo Papa Nicolau IV, em 1288. Tal como frequentemente sucede - surgindo uma concordata após uma grave crise institucional entre as duas Entidades contratantes, com a finalidade primária de lhe pôr ermo - assim ocorreu com a de 7 de Maio de 1940. Teve em vista encerrar a profunda crise desencadeada, trinta anos antes, pela acintosa Lei de Separação de 20 de Abril de 1911. Vigora há quase 60 anos; mas não de todo inalterada. Em 15 de Fevereiro de 1975 - já em pleno Estado democrático, fruto da revolução de Abril - foi assinado em Roma um Protocolo Adicional, pelo então Ministro da Justiça Dr. Salgado Zenha e o Secretário de Estado Cardeal Villot, representando respectivamente o Presidente da República e o Sumo Pontífice. Alterando substancialmente o art. 24, que subtraía o casamento canónico ao divórcio civil, afirma expressamente, no nº II: "mantêm-se em vigor os outros artigos da Concordata de 7 de Maio de 1940". Desse modo, creio poder dizer-se que a concordata vigente, embora materialmente mantenha o texto acordado há 60 anos - com a alteração do citado art. 24 - formalmente reporta-se a 9175, já no actual regime democrático. Causa estranheza que os mass media, ao referirem-se a ela, apenas falem do Estado Novo, com fotografias do Dr. Salazar e Cardeal Cerejeira, e não do Dr. Zenha e Cardeal Ribeiro e a nova Democracia. Parece legítimo fazer do facto uma leitura pouco favorável à isenção e objectividade dos homens da política e da comunicação social... 5. É de esperar que se iniciem brevemente negociações bilaterais para a revisão da Concordata. Há mais de dois anos - muito antes das arremetidas do Bloco de Esquerda - os Bispos mostraram-se disponíveis para colaborarem naquela, embora o assunto seja da exclusiva competência do Estado e da Santa Sé, naturalmente através do Governo e da Secretaria de Estado. Eu mesmo já tenho apontado alguns temas que, na minha óptica, podem ou devem ser alterados. Tais como: supressão dos arts. 26-29 sobre as missões (e Acordo Missionário que o complementou) e o Padroado, por alteração radical dos pressupostos, embora dando lugar a um outro único, com afirmação de princípios; expurgar os arts. 6, 15, 20 e 21, de pormenores ultrapassados; esclarecer, se não mesmo alterar, as isenções consignadas no art. 8; abrogar, ou modificar substancialmente, o sistema de pré-notificação oficiosa na nomeação dos Bispos, a que se referem os arts. 9 e 10. Aos dois sujeitos da relação jurídica concordatária compete constituir, para o efeito, uma comissão mista. Qualquer cidadão, no entanto - leigo ou clérigo, político ou jornalista - pode sugerir o que lhe parecer bem, contribuindo assim para o bom desempenho do encargo daquela, ao serviço das Altas Partes contratantes. + Eurico Dias Nogueira Arcebispo Primaz Emérito


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