A discussão entre os conceitos “público” e “privado”, chegou a todas as esferas da vida pessoal e social, tem sido cada vez mais intensa, mas nunca isenta de interrogações e de consequências, que não são fáceis de deitar para debaixo do tapete da mesa do debate. Tão complexa é esta discussão, que as contradições de quem nela peleja, se tornam claras aos olhos de todos. Ainda há pouco tempo se eliminou um candidato a comissário europeu, pelas suas ideias pessoais e, dizia-se, pelo receio da possível influência destas nas suas decisões. A mesma gente deste clamor destruidor, diz agora, que ninguém tem nada a ver com a vida privada dos políticos, o que eles pensam ou como vivem. Tudo independente da sua missão pública, o que é ou pode vir a ser.
Na minha perspectiva estamos perante um mundo de confusões e arbitrariedades. Porque se trata de tema que anda na rua, achegas para a sua clarificação e reflexão, não prejudicam ninguém e não se baralha mais o problema. Talvez até se faça alguma luz no espírito daqueles que não têm medo à luz. . .
É evidente que ninguém tem direito a julgar ninguém ou a entrar no seu mundo interior, e aí se arvorar sentenciador que condena ou absolve. Porém, a consciência individual é norma de moralidade importante que tem reflexos exteriores certos. Por isso, ela deve ser formada em bases éticas reconhecidas e tendo, como referência, critérios que estimulem, libertem, ajudem a crescer e permitam uma vida sadia e responsável, nas relações mútuas e sociais.
“Ser”e“ser-com-os-outros” são dimensões da compreensão de cada um de nós e sempre, para cada pessoa, elementos constitutivos e inseparáveis de uma personalidade que se afirma e se manifesta na sua história e vivência de cidadão responsável. Há aqui um nó que entrelaça o eu pessoal, relacional e social, que não permite mais, a quem queira viver e conviver de modo digno, edificar um muro de incomunicação ou de orgulho entre a vida privada e a vida pública, ambas dimensões da mesma e única vida.
O esforço individual de coerência é, por isso mesmo, de respeitar e estimular. Ele é indispensável. Quem não faz este esforço, é julgador fácil dos outros e julga-se modelo, que não é, nem pode ser de ninguém. Há opções discutíveis, mas legítimas, não sendo as mesmas para todos. Nunca, porém, devem pôr a pessoa em contradição consigo, nem em tensão ou incomunicação com os outros, como se tudo lhe fosse alheio.
“O que queremos, facilmente o acreditamos”, é um adágio que exprime o resvalar inevitável da vida para o terreno alagadiço do que simplesmente se gosta. Quando as opções e decisões influenciam a vida dos outros, elas não são nunca indiferentes.
Vemos projectos que esboroam a estabilidade da família, vazio crescente de sentido na vida de muitos jovens, caminhos tortuosos de corrupção social, egoísmos pessoais exacerbados, tensões pessoais que geram separação e morte, inversão inaceitável na apreciação das pessoas, das coisas e das actividades, leis que só satisfazem grupos aguerridos e teimosos, omissões e cedências flagrantes pelo receio de desagradar. Não é geração espontânea, legítimo pluralismo, mas a modernidade acrítica a impor-se.
Só responsáveis, com a vida pessoal eticamente estruturada, são capazes de intervir publicamente, permanecer de pé e não andar ao sabor de gostos e pressões. Para cargos públicos, especialmente de primeiro plano, precisa-se “Gente de um só parecer, de um só rosto e de uma só fé”, como dizia o clássico. De outro modo, “o fraco rei fará fraca a forte gente”. Ao povo interessa o que concorre para o seu bem. Isto espelha-se na vida.
Quem aceita ser condutor de outros, tem paredes de vidro e coração de carne. Tem de se esforçar para que, na sua vida, o tom dê com o som.. O povo é sensato e bom julgador. Não entra em discussões de intelectuais, mas não abdica da sua natural sabedoria.
(In Correio do Vouga)