Dossier

Revisão da Concordata: o que é necessário mudar?

Pe. Saturino Gomes
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Comentário de Manuel Saturino Gomes, Director da Faculdade de Teologia

Não podemos ficar indiferentes a vários acontecimentos que passaram no palco desde 1940 até hoje: mutações sociais e políticas de vária ordem, lei da liberdade religiosa (1971), mudança da Constituição portuguesa, desactualização de alguns artigos da Concordata, não cumprimento total de alguns, novo projecto de lei de liberdade religiosa, etc. É natural que se defenda a revisão da Concordata mas não a sua revogação como pretendem algumas forças políticas. Não é um drama, é uma situação que deve ser encarada dentro do processo normal das instituições humanas. A Concordata de 1940 é celebrada num contexto histórico e cultural que não podemos esquecer, estando ainda vivas as consequências anti-religiosas da I República. O conhecido J. Maritain, defensor da liberdade religiosa, numa obra publicada em 1942, elogiava esta Concordata, não por simpatia com o regime político de então, mas porque achava que o Estado português abdicava de fazer do catolicismo religião oficial e porque, ao mesmo tempo, recusava o laicismo e o agnosticismo. Devemos encarar estes tratados numa linha de serviço à pessoa humana, pois a Igreja e a comunidade política trabalham unidas para essa finalidade, como ensina o Concílio Vaticano II: "A comunidade política e a Igreja, embora por títulos diversos, ambas servem a vocação pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si uma sã cooperação" (Gaudium et Spes, nº 76). E a Santa Sé continua a assinar Concordatas, Acordos e outros documentos de carácter internacional com Estados e Organizações. O conhecido constitucionalista Vital Moreira tem-se pronunciado várias vezes contra a Concordata e temas decorrentes; há dias esplanava num jornal diário algumas ideias com as quais não podemos concordar: "...para conferir à mesma Igreja um conjunto de regalias e de privilégios que, além de não serem reconhecidos a mais nenhuma outra, transformavam o Estado Português numa espécie de Estado católico, contra o princípio da separação...". Não se pode considerar privilégio aquilo que é concedido por justiça, em virtude da actuação da Igreja no campo social, cultural e religioso; além disso, a Igreja foi espoliada dos seus bens por altura da implantação da República. O princípio da separação estava assegurado teórica e doutrinalmente e é erróneo declarar que não se verificava a separação entre a Igreja e o Estado ou, então, que o Estado português era um Estado confessional. Se as expressões sociais e culturais de uma sociedade não podem ser marginalizadas pelo Estado, seja qual for o regime vigente, por que razão as instituições religiosas, fruto de vivências e convicções pessoais, identificadas com a história de um povo, terão de ser remetidas para a esfera privada só para justificar o laicismo e as posições de ataque à Igreja e às confissões religiosas por parte de sectores que a pretexto da "igualdade" querem diminuir a visibilidade e "enfraquecer" a missão da Igreja Católica? Algumas ideologias gostariam também que a ética se exilasse no uso privado e não tivesse incidência na cultura, na família, na política! Posições deste género já não se coadunam com o sistema democrático e pluralista, com a cultura moderna, com a compreensão verdadeira da religião, com um sadio respeito pela acção do Cristianismo e de outras confissões religiosas, pela consideração das opções religiosas que inevitavelmente interferem no domínio público. Se há algum fenómeno que é ao mesmo tempo privado e público é o da relação do homem com Deus. O Dr. João Soares, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, em declarações ao Semanário Expresso (19.2.2000), reconhece o papel excepcional e incontornável da Igreja Católica na sociedade portuguesa e não está de acordo com aqueles que querem pôr a Igreja em pé de igualdade com as outras confissões religiosas. Segundo o mesmo autarca, a revisão da Concordata (e não a sua revogação) não dever perturbar as excelentes relações entre o Estado português e a Santa Sé. E é verdade. Há que contar com a boa vontade e a sinceridade do poder político para levar a termo uma revisão que dignifique o nosso país católico e as boas relações com a Santa Sé, independentemente do credo ou do grémio a que cada um pertença. Cada Concordata é fruto do seu tempo e das circunstâncias adjacentes, como também o é qualquer documento jurídico ou de outra índole. Indicarei brevemente alguns pontos que, segundo o meu ponto de vista pessoal, poderão ser objecto de alteração, sem qualquer pretensão de ser exaustivo neste assunto. 1. Artigos 26,27,28,29 e Acordo Missionário - Estes Artigos e o Acordo Missionário tiveram a sua vigência no tempo das colónias. Foi perdendo a sua actualidade mas não foram denunciados por nenhuma das partes. Ultimamente podia ser aplicado ainda a Macau e a Timor. Deixarão de existir no futuro documento. 2. Artigo 6º - Refere-se à propriedade dos bens da Igreja, aos imóveis classificados como "monumentos nacionais" e como "de interesse público", com a consequente manutenção, reparação e restauração por parte do Estado, a utilização dos objectos de culto que foram da Igreja e que se encontram na posse dos museus, etc. Esta é uma área muito sensível e que terá de ser resolvida e equacionada com os direitos das instituições, a sua legítima pertença, as evoluções havidas, a legislação publicada, a futura Lei do Património Cultural, a celebração de Protocolos parciais... 3. Artigo 8º - Estão isentos de impostos ou contribuição: os templos e objectos nele contidos, os seminários e casas de formação para o clero, os eclesiásticos no exercício do seu múnus espiritual. É este um artigo que tem gerado alguma controvérsia, pois ataca-se a Igreja dizendo que ela goza de privilégios e que não é capaz de se desfazer dos mesmos. A Igreja Católica pode beneficiar de outras normas favoráveis, o mesmo se aplicando às instituições religiosas de outras confissões. No âmbito do imposto municipal de sisa e do imposto sobre sucessões e doações, existe uma isenção para as aquisições de bens efectuados por instituições de carácter religioso, quando destinados à directa e imediata realização dos seus fins (cf. Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações, artº 13º nº 14). Também será aplicável o artigo 50º nº 1, alínea c) do Estatuto dos Benefícios Fiscais, segundo o qual estão isentas de contribuição autárquica "as associações ou organizações de qualquer religião ou culto às quais seja reconhecida personalidade jurídica, quanto aos templos ou edifícios exclusivamente destinados ao culto ou à realização de fins não económicos com este directamente relacionados". Ver também algumas isenções do IVA (por exemplo, artigo 9º do respectivo Código); do mesmo modo, o artigo 56º nº 2, alínea a) do Código do IRS e o regime das instituições de solidariedade social e das pessoas colectivas de utilidade pública ou de utilidade pública administrativa. Há também condições favoráveis para as instituições de solidariedade social, sejam elas católicas ou não (artigo 9º nº1, alínea b) do Código do IRC). A Igreja, através do Sr. Patriarca de Lisboa e Presidente da Conferência Episcopal, já fez saber que esta matéria não é intocável e que pode ser reformulada: "O capítulo dos benefícios fiscais não é intocável: somos o mais abertos possíveis. Não queremos privilégios, mas queremos justiça: que a Igreja Católica seja tratada de acordo com aquilo que fazemos e com aquilo que realmente significa par o povo português". A Igreja exige que se considere o papel relevante que exerce na sociedade e que não pode ser ignorado nesta área das isenções fiscais. É difícil desde já antever qual a solução a seguir. Manter a situação actual? Isenção alargada unicamente às Dioceses e aos Institutos de Vida Consagrada? Possibilidade dos fiéis destinarem uma percentagem dos seus impostos em benefício da Igreja? Na hipótese da Igreja (pessoas físicas e jurídicas) não ser contemplada com a isenção total de certos impostos, porque não prever a criação de um Instituto ou Fundo para onde revertesse anualmente uma soma atribuída pelo Estado à Igreja? 4. Artigo 10º - A Santa Sé, antes de proceder à nomeação de um Arcebispo ou bispo residencial ou de um bispo coadjutor comunicará o nome dessa pessoa ao Governo a fim de saber se contra ela há objecções de carácter político geral. É o direito de pré-notificação. Não tem nada a ver com o privilégio antigo de que Portugal, como outros países católicos, gozava, de o Governo designar ou apresentar os candidatos ao episcopado, a que a Igreja conferia depois a instituição canónica. Ao contrário do que muitos insinuam, o Governo não tinha e não tem direito de veto sobre as nomeações episcopais, a Igreja não se sente condicionada com a opinião manifestada, podendo nomear a pessoa que achar mais idónea. Refere-se unicamente a "objecções de carácter político geral", o único sobre o qual o Governo se pode pronunciar. Esta matéria deverá ser reformulada, pois o Governo não tem de ser consultado sobre a escolha dos Bispos, tem de haver distinção e liberdade na jurisdição civil e eclesiástica. Atendendo, porém, à cooperação entre as duas partes a Igreja poderá optar por informar simplesmente o Governo acerca da pessoa escolhida para Bispo diocesano, método seguido noutros países. 5. Artigo 21º - "O ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País..." O Estado queria que a juventude fosse educada numa perspectiva cristã da vida, dentro dos princípios da doutrina e da moral católicas, devido ao papel preponderante da Igreja Católica na vida da nação. O Estado não declarava a religião católica como oficial, mas por outro lado não queria ser agnóstico nem indiferente ao fenómeno religioso. A Igreja entende que deve providenciar para que os princípios católicos da educação sejam proporcionados aos seus fiéis, tanto nas escolas públicas como privadas. É indubitável que a religiosidade é parte integrante do ser humano, querer ignorar essa dimensão e bani-la das escolas é prova categórica que se quer impor uma cultura laica à sociedade quando ela é crente e receptiva a uma educação baseada nos valores da sua religião. O estudo e o conhecimento das religiões projecta o homem para um horizonte não confinado com o aspecto meramente material. Este artigo merece uma reformulação no contexto da existência de outras Religiões e confissões religiosas no nosso país, tendo elas também o direito de proporcionar aos seus membros o ensino religioso. Isto é, não se poderá impor que seja esta ou aquela moral a vigorar num certo país. Desde há alguns anos que vem sendo publicada legislação sobre a Educação Moral e Religiosa Católica nas escolas bem como da viabilidade para outras religiões, dentro de certas condições. Pergunta-se se o Governo, nas alterações e interpretações que fez, consultou a Santa Sé em consonância com o artigo 30º da Concordata: no caso de haver dúvidas sobre a interpretação da Concordata, a Santa Sé e o Governo português procurarão de comum acordo uma solução amigável. 6. Artigo 22º - "O Estado Português reconhece efeitos civis aos casamentos celebrados em conformidade com as leis canónicas, desde que a acta do casamento seja transcrita nos competentes registos do estado civil". O Estado pode continuar a reconhecer efeitos civis aos casamentos católicos, conferindo também a mesma oportunidade aos casamentos de outras confissões religiosas. 7. Artigo 24º - Este artigo sobre a proibição dos católicos recorrerem ao divórcio foi já alterado pelo protocolo adicional de 15 Fevereiro 1975. As pessoas que contraíram matrimónio canónico poderão solicitar o divórcio, recomendando a Igreja o grave dever dos cônjuges em respeitarem as propriedades essenciais do matrimónio. A Igreja cedeu contra sua própria vontade, pois ela nunca poderá aprovar esse recurso extremo. Manuel Saturino Gomes Director da Faculdade de Teologia


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