Dossier

Santidade e popularidade

Pe. Jacinto Farias
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De norte a sul do país, muitas localidades celebraram a festa de Santo António. O «doutor evangélico» é recordado de múltiplas formas

Santo António, o santo mais popular do catolicismo, depois, talvez, de S. Francisco. Ainda me recordo das histórias que uma das minhas tias, a minha tia 'dos Anjos' (era assim que nós dizíamos abreviando Maria dos Anjos), histórias singelas que enchiam de emoção a imaginação e a fantasia popular, histórias, decalcadas aliás nos apócrifos da infância de Jesus, que nos mostravam a santidade extraordinária de António, simultaneamente santo e traquina, como todas as crianças. E eu próprio, muito traquina também, quando ia guardar os cerrados de trigo, quantas vezes desejava ser como o menino Santo António, que dizia aos pássaros para não comerem do seu quintal, e eles lhe obedeciam!... Para as raparigas em idade de casar, Santo António era o casamenteiro, e faziam-lhe novenas para que ele lhes deparasse o namorado tão desejado; faziam-se responsos, para encontrar coisas desaparecidas, para lhe pedir a intercessão em causas perdidas!... Mais tarde, questionei-me sobre a razão de tanta popularidade, e então deste grande santo, que é de Lisboa, para os portugueses, e de Pádua, para o resto do mundo, 'Il Santo', diz-se em Pádua, recolhi algumas lições. A primeira lição, é a da leitura atenta do Evangelho como alimento da inteligência e fortaleza da vontade. Santo António é conhecido como o 'Doutor evangélico', porque nele encontrava a razão da sua pregação. E do Evangelho ele colhia o essencial, ou seja, o mistério da Incarnação, porque o Evangelho como texto é o reflexo da Palavra que se fez carne, que se fez Menino. Por isso é que Santo António é representado com um livro no braço (o livro dos evangelhos) sobre o qual está sentado o Menino Jesus. É toda a espiritualidade da Incarnação, da divina humanidade do Verbo Incarnado, do Natal, tão franciscana, tão antiga e tão actual. S. Francisco percebeu bem o que se passava na alma e no coração de Santo António, ao ponto de o encarregar da formação teológica dos primeiros frades, e enviou-o também a anunciar o Evangelho para o sul França, onde dominava a seita dos cátaros e dos albigenses, maniqueus que negavam o valor e o sentido da incarnação, que diabolizavam tudo o que tivesse a ver com a matéria, com o corpo, com a sexualidade, e por isso defendiam que o único caminho da perfeição era a absoluta contenção das pulsões da carne, pois tudo era mau, tudo era pecado. Santo António proclamava a santidade do matrimónio, que não havia apenas um caminho para a santidade, mas muitos caminhos, e que tanto podiam ser santos os frades e os monges como os solteiros e os casados, porque o matrimónio é caminho de santidade, a sexualidade é caminho de santidade, tudo pode ser caminho de santidade, desde que vivido no Senhor, e por isso ele aconselhava os jovens cristãos que se não sentissem chamados para a vida religiosa, que casassem no Senhor e que vivessem na santidade, porque o casamento no Senhor é uma coisa sagrada. Foi nesta época que a Igreja proclamou solenemente a sacramentalidade do matrimónio, justamente para responder, entre tantas coisas, à heresia cátara. E foi assim que Santo António entrou no imaginário popular como o Santo Casamenteiro. Ainda hoje há os 'noivos de Santo António', embora muitos não saibam a razão, sobretudo aqueles que vão casar pelo civil..., mas enfim, a questão lá está como memória que seria necessário reavivar. Esta característica incarnacional da espiritualidade de Santo António assumiu uma configuração eucarística. Nesse tempo, em Liège, por influência de umas senhoras piedosas, começou a espalhar-se a devoção ao Santíssimo Sacramento, movimento que colheu a enorme simpatia de S. Francisco, que, ao que me parece, lá foi pessoalmente, em peregrinação, porque ele sentia que essa era a sua grande intuição: que o evangelho da incarnação é essencialmente evangelho eucarístico. Foi um movimento fecundíssimo de renovação espiritual, que levou o Papa Urbano IV a estender esta devoção a toda a Igreja, com a Festa do Corpus Christi, que ainda hoje, tantos séculos depois, continua a celebrar-se. Os autores espirituais do séc. XIX consideravam o mesmo mistério da Incarnação sob outra perspectiva: a do Coração de Jesus, do Coração eucarístico de Jesus. Para João do Coração de Jesus, ao longo da história da Igreja, a espiritualidade teria evoluído, sempre na contemplação do mesmo mistério da Incarnação, mas a partir de pontos de vista diferentes. Assim, na antiguidade, era a figura do Bom Pastor; a partir do séc. IV, a Cruz; na Idade Média, como acabámos de ver, a Eucaristia; e na modernidade, o Coração de Jesus, o Coração trespassado, que se dá em êxtase de amor, que cura o coração do homem ferido pelo pecado. O Coração de Jesus é a expressão perfeita que integra o Bom Pastor, a Cruz, a Eucaristia, e este seria então, diz o P. Dehon, o grande dom de Deus para os tempos modernos, influenciados por uma outra heresia anti-incarnacional, o jansenismo. Como seria bom que se recordasse a quem o festeja, com sardinhas, com arraiais, com marchas, com as noivas de Santo António, com responsos, ou outras formas mais ou menos marginais ou mesmo heterodoxas, as razões da popularidade de Santo António. A sua popularidade é a santidade; o seu segredo é levar no braço e sobretudo no Coração, o Evangelho da Incarnação, a mística e a espiritualidade do Coração eucarístico de Jesus. A recente encíclica de João Paulo II poderia ser para todos um bom meio de ir além de Santo António, para onde aponta a sua simpática e traquina figura. José Jacinto Ferreira de Farias, scj


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