Dossier

Ser Bispo do Porto

D. Carlos A. Moreira Azevedo
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É normal que o pastor de um dado território acolha e comungue com o idiossincrasia do povo que lhe foi confiado. Assumir as características de uma diocese com história é de elementar lucidez. Perceber as energias e potenciar os valores de uma tradição é exercício essencial para o lançamento de projectos e para a descoberta de rumos. É que ao líder, mesmo pastoral, requer-se esta captação das características de uma região e ousadia de propostas para fazer crescer as potencialidades e colmatar as lacunas. Ora, pertencem à identidade ciosa e autónoma do portuense: um carácter de honra granítica, uma tonalidade sóbria e altiva de quem emergiu na afirmação do poder à custa do trabalho desenvolto, um tratamento áspero e rude com sabor a maresia, uma alma patente no bom coração, generoso e leal. Herculano chamava-lhe “antigo carácter portuguêsâ€. Torga apercebia-se da “saudável consciência gregrária†que não se anima com “cavalarias cosmopolitasâ€. Cortesão não via que o “zeloso amor às liberdades locais esfriasse o sentido e a consciência da unidade nacional.†A visão desembaraçada, fruto da longa influência mercantil, não esperou ninguém, em vários momentos da história, para lutar pela liberdade ameaçada, contra o poder centralista. Desde a Idade Média, passando pelo despotismo pombalino, chegando às duras guerras liberais e à actualidade, o Porto exerceu uma liberdade crítica em relação ao poder instituído. A experiência de estar longe do poder, sem perder a consciência do peso das decisões na vida das gentes ocasionou no país movimentos de alteração renovadora, na linha do futuro. Pratica-se uma linguagem frontal, sem almofadas e rodeios. As reverências e salamaleques da abordagem urbana, carregada de cálculos e diplomacias manhosas, não seduzem as gentes do Porto. Como tem sido vivida a relação entre o Burgo e o Bispo não cabe neste espaço. Desde os suevos à urbe episcopal, restaurada pelo foral de D. Teresa ao bispo francês D. Hugo, da liberdade conseguida pelos cidadãos até ao respeito pela voz livre do Bispo há uma história curiosa. É, no entanto, recente a atribuição de peso específico à expressão “ser Bispo do Portoâ€. Só acontece em virtude de figuras marcantes que expressaram em atitudes concretas a sua adesão e correspondência à cidade a à diocese. Basta recordar dois bispos dados ao Porto no princípio e nos finais do século XX, que captaram o tom próprio da cidade. O bondoso missionário D. António Barroso foi bispo do Porto entre 1899 e 1918. Provou, na coragem com que defendeu a liberdade da Igreja perante os atropelos e ofensas republicanas, ser homem destemido, sem se vergar diante da injustiça. Sofreu o alto preço de dois exílios e conquistou o coração dos por-tuenses. No final do século, D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto entre 1952 e 1982, enfrentou o regime de Salazar com críticas nascidas da doutrina social da Igreja. Denuncia o aparente concordismo da política do Estado Novo com as posições autenticamente cristãs. A liberdade ousada da sua verticalidade obrigou-o a dez anos de exílio fora do país. Mas nem essa experiência amarga calou a voz profética do Bispo do Porto. Continuou fiel à difícil missão de Bispo e as intervenções, antes e depois do 25 de Abril, apontaram caminhos questionado-res da realidade vigente e lançaram luz inovadora para os problemas nacionais. O facto de viverem próximos da realidade do trabalho, do concreto existencial das populações permite aos bispos um pressentimento da evolução do país e a antevisão de soluções para os problemas, por via directa e não discursiva. Os lugares só marcam os que os ocupam quando há simultaneamente consciência de um cumprimento fiel do encargo e liberdade para recriar o ânimo de um povo. Ao aceitar a missão episcopal, a humildade recomenda ao pastor que dê continuidade crítica ao legado regional, por realismo cultural e não por regionalismos distorcidos do bem nacional ou afastados da dimensão evangélica, diapasão de todas as opções. É isso que tem permitido aos bispos do Porto identificarem-se, através dos seus dotes e limites pessoais, com a tonalidade humana encontrada e construirem, em complementa-ridade, um projecto evangelizador para esse terreno específico. Alguns mostraram-se excelentes bispos da Igreja universal, à maneira do Porto. O modo é relativo, até estranho para habituados a estilos diferentes ou a episcopado sem estilo definido. Portugal tem benefeciado todo destes contributos. Carlos A. Moreira Azevedo


D. Armindo Lopes Coelho