Ser para a Ressurreição
Obras primas da arte cristã, nomeadamente medievais, representam Jesus Cristo na cruz com uma serenidade e soberania que já são próprias da ressurreição. E antigos relatos do suplício dos mártires contam que, por vezes, acontecia desaparecerem dos seus rostos a expressão do sofrimento, e era já a alegria da ressurreição que deles irradiava. Entre a cruz e a ressurreição há uma unidade profunda, a unidade do mistério pascal, da “passagem” de Jesus para o Pai, numa obediência que é expressão de amor inexcedível, e cuja fecundidade se mostra na nova comunidade que a ressurreição faz surgir, a Igreja.
“Eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Deste modo se referia Jesus Cristo à sua morte na cruz, segundo o evangelista S. João (v. 33). Pelo mesmo verbo “elevar” se exprime neste Evangelho a glória que será revelada pela ressurreição. É a mesma glória que se manifesta na cruz e ressurreição, momentos de um só mistério, o mistério da Páscoa (“passagem”) definitiva. “Antes da festa da Páscoa, Jesus, sabendo bem que tinha chegado a sua hora da passagem deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo.” (Jo 13,1)
Testemunha singular da fé na ressurreição é o teólogo redentorista francês, François-Xavier Durrwell que, em 1950, publicou a sua primeira obra A ressurreição de Jesus, mistério de Salvação. Desde então, este mistério último e primeiro da fé cristã não tem deixado de estar no centro de todos os seus estudos, como fecho-de-abóbada de todo o edifício da fé, tal como é o seu fundamento. Em 2001 surgiu uma sua obra de síntese, como que o seu testamento teológico, com o título Cristo nossa Páscoa, em que de novo repete e aprofunda a sua tese. A obediência total de Jesus na cruz tem um tal valor de dádiva ao Pai que significa a sua realização humano-divina plena de Filho, a sua “geração” como Messias Filho de Deus, como fora anunciado pelo Salmo 2, v. 7: “Tu és meu Filho, Eu hoje te gerei”. É, com efeito, à ressurreição de Jesus que S. Paulo aplica este anúncio messiânico (Act 13,33). E se S. Paulo só prega Cristo crucificado (cf. 1Co 2,2), Cristo é sempre para ele o Senhor ressuscitado. “Se confessares com a tua boca: ‘Jesus é o Senhor’, e acreditares no teu coração que Deus o ressuscitou de entre os mortos, serás salvo.” (Rm 10,9s) “Se Cristo não ressuscitou é vã a nossa pregação, é vã também a vossa fé.” (1Co 15,14)
A salvação operada por Jesus na cruz é um mistério de filiação. Segundo o hino cristológico citado na Carta de S. Paulo aos Filipenses (2,3-5), Cristo que tinha um ser, uma condição divina – e portanto a poderia reivindicar sem a arrebatar ilegitimamente como presa –, em vez disso dela se esvaziou para assumir o ser, a condição de servo própria do homem e do último dos homens. É esse o significado do sofrimento e morte de Jesus sobre a cruz: o facto de o Filho de Deus se querer solidarizar totalmente com o homem, querer partilhar da sua condição no que ela tem de mais humilhante, para que fosse toda essa condição humana a ser salva e assumida na nova realidade instituída por Deus em Cristo. Esta é a realidade de um homem que, na sua própria humanidade, se torna Filho de Deus – o que acontece pela sua fidelidade plena a Deus, demonstrada na sua fidelidade total à humanidade, no seu amor pelos homens: “... há um só... mediador entre Deus e os homens, um homem: Jesus Cristo, que se entregou a si mesmo como resgate por todos.” (1Tm 2,5s). Ele torna-se Filho para, com Ele e por Ele, todos podermos entrar na intimidade de filhos com Deus “nosso Pai”. E, assim como é no Espírito Santo que a geração última de Jesus como Filho se realiza na cruz-ressurreição, assim também é o Espírito Santo que, em nós, nos faz dizer: “Papá (Abbá), ó Pai” (cf. Rm 8,15; Gl 4,6), tal como Jesus rezava ao Pai chamando-lhe Abbá, Papá (cf. Mc 14,36).
Durrwell tem sido criticado por parecer minimizar o papel do sofrimento e da morte na redenção operada por Jesus. Mas o teólogo não desiste de insistir que o importante não é esse sofrimento e essa morte, em si mesmos, mas a atitude pessoal de dádiva total (“obediência”, na linguagem bíblica, cf. Fl 2,8) que nesse partilhar da condição humana se exprime e realiza. Essa atitude, provinda afinal do Filho de Deus que Jesus é, opera no homem que Jesus é igualmente, em fidelidade total à sua condição humana, uma geração, uma incarnação humana da sua filiação divina.
Salvação pascal significa, pois, acedermos a essa exaltante condição filial em face de Deus, de tal modo que o próprio sofrimento e a própria morte, no vazio do seu sem sentido, se tornam o lugar do acesso a Deus e aos irmãos, não pelo seu sem sentido, mas porque é através desse vazio que o Filho de Deus por amor se esvazia da sua condição divina, assumindo a condição de servo; e sendo deste modo gerado, também como homem, para uma filiação divina de que todos nós podemos participar pela fé.
Limitado ao seu horizonte intramundano, pode o homem aparecer apenas como um “ser para a morte” (Heidegger) – e sê-lo-á, de facto, se não aceitar a salvação que lhe vem por Cristo, como já o viu St. Agostinho. Inserido, porém, na filiação divina que nele opera o mistério pascal, é um ser para a ressurreição. Durante a sua vida terrena, dos cristãos não se espera tanto que se preparem para a morte. Deles se espera sim que, deixando-se cada vez mais possuir pela filiação divina, se preparem para a ressurreição. O mesmo é dizer o lugar inalienável que a esperança tem para os cristãos. O indicativo da ressurreição é, para todos os que vivem em Jesus Cristo, um imperativo de alegria: “Alegrai-vos todos no Senhor! De novo digo: alegrai-vos!” (Fl 4,4) E não é este o testemunho de tantos que, nas provações da vida e perante a própria morte, irradiam a força e a luz da fé na ressurreição? Um testemunho que não desconhece o dramático das situações votadas à dor e à destruição, mas que o transcende no sentido último da vida e da história.
H. Noronha Galvão
Professor UCP