Dossier

Sociabilidades crentes na cidade

Alfredo Teixeira
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Alfredo Teixeira, Sociólogo e Teólogo.

1. Tornou-se cada vez mais evidente que as nossas sociedades passaram a ser constituídas por populações em trânsito, à mercê de transformações que podem fazer de qualquer indivíduo um estrangeiro na sua própria terra. Isto afectou também a identidade religiosa; em muitos casos, a referência religiosa ficou agarrada ao lugar de fundação e surge na consciência dos indivíduos apenas como memória, lugar de investimento afectivo nas origens: a infância, a família, a terra (uma espécie de “religião dos paisâ€, ou “religião da nossa terraâ€). Em termos gerais, a situação é conhecida. O fenómeno da urbanização contemporânea colocou os indivíduos no contexto de uma experiência de deslocação da existência; o fenómeno da dispersão tornou-se o paradigma da existência individual e colectiva; cada um passou a pertencer a vários lugares - lugar de residência, lugar de trabalho, lugar de lazer, lugar de consumo -, como se cada um habitasse espaços descontínuos e continuamente passasse de um para outro. E se dizemos isto do espaço, podemos dizê-lo também do tempo, já que deixámos de viver num tempo social homogéneo, para passarmos a viver numa disparidade generalizada de ritmos e horários. Esta dispersão do espaço e do tempo é acompanhada pela multiplicação de relações funcionais, sempre fragmentárias, nas quais o indivíduo ora é cidadão, ora trabalhador, ora cliente, etc. Neste contexto, o enraizamento da identidade pode passar mais pela implementação de grupos de eleição do que pelo regime de pertença a um lugar. Esta situação implica pois novos modos de pertença à colectividade mesmo que essa colectividade seja uma Igreja. 2. As grandes unidades habitacionais plurifamiliares tornaram-se, em muitos países, um emblema dos modos urbanos e modernos de habitar o território. Todos conhecemos o comentário recorrente acerca das formas de sociabilidade nesses blocos habita-cionais: que as pessoas vivem lado a lado, mas não se conhecem. De facto, isso é uma evidência, mesmo se depende de variáveis que aqui não interessa esmiuçar. Mas talvez não pudesse ser de outra forma. Essa modalidade de urbanismo impõe alguns limites à possibilidade do desenvolvimento de relações de proximidade a partir da vizinhança. Tenha-se em conta o potencial de conflito que encerraria um modo de sociabilidade semelhante ao das comunidades camponesas, onde “todos se conhecemâ€, onde frequentemente a “intriga†é um modo privilegiado de circulação de informação. Numa situação em que a densidade é enorme, esse conhecimento interfamiliar poderia abrir a porta a conflitos insanáveis - como explicou um dos clássicos da sociologia, G. Simmel, dir-se-ia que esses citadinos compensam em distância psicológica o que lhes falta em espaço físico. Nesse sentido se deve perceber a urbana procura do anonimato (mesmo se entre a multidão que invade um centro comercial). Esse anonimato é uma forma de defesa pessoal ao serviço de uma cultura individualista, longe já do comunitarismo que ainda podemos observar em culturas rurais (talvez algum do nosso imaginário em torno da paróquia esteja ainda muito limitado pela idealiza-ção da civilização rural). Mas, paradoxalmente, esse mesmo indivíduo urbano que se defende com os recursos do anonimato, procura o reconhecimento do outro. É o mesmo espaço urbano que facilita o desenvolvimento de uma cultura de relações amigais, grupais, de reconhecimento mútuo. O desafio das comunidades crentes na cidade passa por encontrar vias de resposta a essa lógica aparente de contrários: respeitar esse desejo de anonimato e responder à demanda de reconhecimento. 3. O termo desterritorialização tem sido usado com frequência para caracterizar as transformações que têm afectado as formas de praticar a paróquia enquanto circunscrição territorial. Em muitas cidades, 60% a 70% dos praticantes das instituições paroquiais não reside nos limites dos territórios que as identificam. Os comportamentos electivos, neste domínio, não são muito diferentes daqueles que o indivíduo urbano conhece no domínio de todas as outras sociabilidades. Também a sociabilidade religiosa deixou de se poder explicar exaustivamente pelas relações de vizinhança, afectada que foi por factores diversos que favorecem uma cultura da individualização, facilitando a mobilidade e a pluralização de trajectórias e ofertas de sentido. Pensemos em todos aqueles que, quando ao Domingo escolhem o lugar onde vão à missa, não seguem os critérios cómodos da proximidade, mas elegem a sua missa dominical tendo em conta a presença de um padre de quem gostam, de um grupo onde se sentem reconhecidos, a força de atracção de certo ambiente celebrativo, o fascínio que determinado templo exerce. Não muito diferentes são os problemas criados pela práticas familiares ao fim-de-semana. Muitos cristãos praticantes regulares e membros activos das comunidades vivem permanentemente essa tensão: estão empenhados em iniciativas diversas naquela que reconhecem como sua paróquia, mas frequentemente não participam aí na reunião dominical. Vivem, assim, a necessidade de encontrar compromissos práticos que possam compatibilizar a centralidade da eucaristia do Domingo com a importância familiar das práticas de fim-de-semana. 4. Mas estas formas de praticar o território são acompanhadas de outros caracteres sociais não menos desafiantes. As Igrejas terão que ter em conta que é na cidade que encontramos frequentemente aquelas pessoas que dificilmente aceitarão propostas do tipo “a Igreja diz…â€, “a Igreja sabe…â€, sem que aí estejam implicadas as suas experiências de vida. Muitas das pessoas que hoje habitam os espaços urbanos procuram ajuda na “arte de viverâ€, querem dar mais qualidade e autenticidade à sua vida - não será, talvez , por acaso que o vocabulário pastoral tenha incorporado no seu jargão o termo “qualidadeâ€. Mas para dar resposta a essa demanda as comunidades cristãs experimentam a necessidade de encontrar dentro de si espaços de grande diversidade, procurando apresentar-se como um lugar onde todos, a partir dos seus dramas, e segundo os seus interesses, podem ter de alguma forma voz e assim confrontá-la com a palavra dos Evangelhos. Aquilo que conhecemos acerca da complexidade das formas de vida urbana remete-nos para uma paisagem social muito diversa. Pensemos nos lugares da cidade que deixaram de ter residentes, mas têm uma enorme densidade de transeuntes e de pessoas em situação de trabalho. É esse o caso de certas paróquias urbanas onde o comércio e os serviços foi tomando conta do espaço residencial. Pensemos nos lugares da cidade que se apresentam como zonas de trânsito, com acessibilidades mais ou menos facilitadas onde as pessoas estão sempre a caminho de qualquer coisa. Tenha-se em atenção as zonas históricas da cidade onde sociabilidades próprias dos bairros populares se mesclam com novas apropriações, nocturnas e diurnas; as zonas residenciais defendidas por condomínios vigiados e as outras desprotegidas que crescem sob a pressão de novos imigrantes. E pensemos também nos que praticam a cidade como um não-lugar, os que vivem da e na rua. Alfredo Teixeira, Sociólogo e Teólogo


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