Testamento Vital - contributo para um debate esclarecedor
Isabel Galriça Neto, deputada do CDS-PP
Desde o final da anterior legislatura que se tem falado mais intensamente da necessidade de viabilizar o testamento vital (TV) no nosso pais. Em nosso entender, esse processo deve ser distinto do que se refere ao consentimento informado, para o qual, aliás, existe já produção legislativa.
Apesar de iniciativas variadas, em nosso entender ainda se mantêm no grande público alguns equívocos sobre esta importante matéria, nomeadamente pela associação que frequentemente se pretende fazer à legislação sobre eutanásia ou a uma politização excessiva, que ignora que este não é um assunto de esquerda ou de direita. Urge esclarecer de que falamos afinal.
O TV (tradução de “living will”) insere-se nas chamadas directivas antecipadas de vontade, conjuntamente com a declaração sobre doação de órgãos e sobre o destino do corpo após a morte. Este TV corresponde a uma manifestação escrita, feita por uma pessoa capaz, que, de forma consciente, esclarecida (o que pressupõe , portanto, que tenha ocorrido esclarecimento) e livremente, expressa as opções e instruções que devem respeitar-se nos cuidados de saúde que venha a receber quando ocorram circunstancias clínicas que o impeçam de comunicar pessoalmente a sua vontade. O TV pode atribuir a outras pessoas poderes de representação em matéria de cuidados de saúde (nomeação de um procurador).Em qualquer dos casos, a sua formulação não se pode opor ao ordenamento jurídico vigente e às boas práticas clínicas, ou seja, existem limites que não permitem que um testamento vital corresponda a um pedido de eutanásia. Este documento não terá carácter obrigatório – só o faz quem quer - e a experiência de países em que o mesmo já existe mostra que não mais de 20% da população redige um TV e desses, menos de 30% a ele recorre efectivamente no final de vida.
Que expectativas se têm ao redigir um TV, fará sentido fazê-lo? Para alguns fala-se de uma porta aberta à legalização da eutanásia ou numa forma de obtenção da mesma, e fala-se também de desconfiança face aos profissionais de saúde. Para outros, existe a ideia que a solução para os problemas de saúde associados ao fim de vida passaria exclusivamente pelo TV. Importa clarificar que a redacção de um TV que respeite o actual enquadramento ético-clínico e jurídico nunca deverá constituir uma forma encapotada de se praticar eutanásia. Além do mais, se o doente estiver consciente, os profissionais têm sempre que verificar se o mesmo mantém as decisões apontadas no documento, já que em qualquer momento as referidas decisões podem ser revogadas. Convém também sublinhar que a resolução dos problemas de sofrimento dos doentes e famílias no final de vida deve em muito ultrapassar este tipo de texto escrito, e deve sobretudo basear-se numa oferta sólida de cuidados paliativos de qualidade.
Um doente tem já o direito a manifestar a sua vontade sobre o tipo de tratamentos que pode entender como razoáveis para atenuar o seu sofrimento em determinadas condições, nomeadamente quando numa condição avançada e comprovadamente irreversível, no final da sua vida. Um médico, no enquadramento jurídico e deontológico actual, tem como obrigação central da sua prática acompanhar a pessoa doente, quer ela se cure ou não, e as boas práticas clínicas, já consagradas no código deontológico dos Médicos (artº 59) sublinham a importância de, em qualquer contexto de doença, se oferecerem tratamentos que não sejam fúteis (ditos proporcionados ou, numa nomenclatura mais antiga, ordinários, não agressivos) e de se poderem mesmo suspender ou não iniciar tratamentos que agravem o sofrimento do doente em situação terminal. A alimentação e a hidratação, nomeadamente as providenciadas de forma artificial, poderão ser ou não enquadradas no pacote dos tratamentos, mas importa clarificar que nas situações terminais de doenças graves e irreversíveis, os doentes não “morrem à fome ou à sede”, como tantas vezes por ignorância se diz, e que forçar a alimentação e a hidratação nesses casos, conduz a maior sofrimento, sem resolver a condição de base que, essa sim, levará à morte do doente.
A redacção de um TV, porque envolve complexidades e se quer esclarecida e informada, tem obrigatoriamente que ser enquadrada numa relação médico-doente, e nas relações com outros profissionais de saúde (nomeadamente enfermeiros e psicólogos), e sempre atendendo a determinadas peculiaridades. A situação de doença, por si só, funciona como dizia Eric Cassel, como um “ladrão da autonomia”, enviesando algumas das decisões que o doente possa tomar e daí carecer de orientação de um profissional como um médico, que detém uma panóplia de informações técnicas que um doente não possui. No entanto, não será esse o argumento para evitar que um doente participe nas decisões sobre a sua vida. Quando devidamente aconselhado e esclarecido sobre as diferentes opções terapêuticas a tomar e as consequências da mesma – embora dificilmente todas possam ser previstas…- estará, regra geral, em condições de decidir ou apontar caminhos sobre o tipo de cuidados que pretende ou não receber caso tenha uma situação de doença que o impeça de comunicar essa mesma vontade.
No entanto, conscientes desta moldura de complexidade e assumindo também que “não existe um mundo perfeito”, em que o Homem domina e determina todos os factores, entendemos que é possível enquadrar a redacção do TV num modelo de relação em que se constitui uma “aliança terapêutica”, em que “o médico ajuda o doente a ajudar-se” e em que a confiança de que o médico actuará no melhor interesse do doente estará inquestionavelmente presente. No contexto descrito, o TV não se torna, convém dizê-lo, uma ferramenta imprescindível mas sim um importante auxílio para médico e doente. Se assim não se actuar, se se banalizar a formulação do documento a que aqui aludimos, corre-se o risco de ter um mero papel assinado que será olhado como um pro forma e pode esvaziar a relação médico-doente, contribuindo até para desresponsabilizar o médico e a equipa de saúde face a situações mais complexas e exigentes.
Viabilizar a legislação sobre um TV ética, clínica e jurídicamente correcto e tornar possível essa opção representa uma oportunidade para os médicos aprofundarem a sua missão, para desenvolverem os seus conhecimentos e aptidões em matérias como a comunicação, a decisão clínica e a ética. Se os médicos souberem e as pessoas doentes quiserem, este será, não um avanço civilizacional, mas certamente um passo importante para aproximar todos os intervenientes no processo de cuidados de saúde e para reduzir na doença o sofrimento que ninguém quer. Nesta perspectiva, e voltando a insistir, só faz sentido discutir o TV integrado num conjunto de medidas alargadas que dignifiquem o final de vida, respeitando-a inquestionavelmente, e enfatizando a necessidade de maior desenvolvimento e acesso aos cuidados paliativos.
Isabel Galriça Neto,
médica de Cuidados Paliativos,
deputada do CDS-PP
Eutanásia/Bioética