Dossier

Testamento Vital ou Mortal?

Filipe Almeida
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Filipe Almeida, professor da Faculdade de Medicina do Porto e director do Serviço de Humanização do Hospital de São João

Mais um dia que o mundo dedica a uma universal sensibilização para com quantos experimentam a fragilidade humana. Numa época em que as potencialidades do saber médico quase fazem acreditar na possibilidade de um domínio absoluto sobre a doença, é essencial que reflictamos na real condição humana, na fragilidade que quotidianamente a constitui. A este ser humano que a cada instante arrisca adoecer, devem os profissionais de saúde, afinal cada cidadão, dispor-se a acolher com autenticidade, dedicando-lhe humana atenção, inteiro respeito, imensa compaixão. Acompanhar um doente é, naturalmente, observá-lo, ouvi-lo, fazer o diagnóstico, propor uma terapêutica, avançar um prognóstico. Mas é, seguramente, acolhê-lo, escutá-lo, conhecê-lo, apoiar no caminho apontado, acrescentar esperança! É saber tornar autêntica uma relação de verdade. E este relacionamento de verdade, autenticado em cada gesto que acontece, é tão mais necessário e exigível quanto mais se ousa tocar a própria finalidade, vivência maior da fragilidade. Quem se avizinha desta etapa ímpar da vida, espera intensidade humana não tecnológica, anseia compaixão não exercícios de poder, aguarda solidariedade não fluxogramas decisórios… Quem está consciente da sua própria mortalidade, augura ser, nesse tempo irrepetível do seu viver, sujeito das boas práticas médicas, não objecto das mais elaboradas e infalíveis guidelines terapêuticas. E esta ânsia de não vir a ser abafado pela força sufocante de uma tecnologia aniquiladora da serenidade e da paz almejadas requer ser atendida exactamente como expressão de uma autonomia a que se tem inegável direito. E da sua protecção devem os profissionais de saúde ser os primeiros e os mais firmes garantes.

A proposta de lei que visou assegurar este exercício de autonomia perverte claramente a dinâmica que deve presidir a este invulgar diálogo que se estabelece entre o profissional de saúde e o seu doente. Na verdade, a leitura restritiva de uma autonomia legal assegura uma formalidade documental mas não entende os dramas humanos que marcam percursos imprevisíveis na dor e no sofrimento... Os médicos conhecem bem incontáveis e surpreendentes histórias de vidas dramáticas. Os profissionais de saúde experienciam muitas tensões humanas de indisfarçável embaraço, como o são as imersas no fim das vidas. Decisões que, não sendo suas, delas não pode nem deve distanciar-se. Deve ajudar à sua definição, contribuindo de forma responsável e, portanto, activa, para a construção de uma decisão que, traduzindo o exercício de uma autonomia do seu doente, espelhe não um mero exercício legal mas uma clara intenção de alcançar o seu melhor bem, a sua mais elevada realização pessoal. É assim indispensável uma aproximação cronológica da tomada de decisão ao tempo a que ela se refere. Só assim poderemos adiantar uma informação realista, sobre a qual poderá sustentar-se eticamente a decisão. De facto, a construção de um testamento, dito vital, que vincule amanhã (quando? em que circunstâncias? em que condições de doença?) um profissional de saúde pode ser de absoluta irracionalidade. Um vínculo testamentário poderá, quiçá, facilitar a posição de um médico quando, perante a dificuldade de uma decisão, se decidir facilmente acatar a indicação testamentária do seu paciente, mesmo que remota e inaceitavelmente distanciada, eximindo-o de propor a “melhor decisão” que, nas circunstâncias reais do tempo agora a ser vivido, poderia e deveria ter diferente solução humana, porque mais adequada ao doente.

Mas é ainda aberrante a circunstância de incluir esta temática no foro do que ao consentimento informado concerne. Não de trata de consentimento, menos ainda e informado. Com efeito, apenas se consente, ou não, sobre algo que nos é proposto. Ora, nenhum médico, à distância a que se prevê suscitar a elaboração de um testamento vital poderá, em consciência, propor qualquer estratégia terapêutica, desconhecendo-lhe obviamente os respectivos contornos clínicos. Tão-pouco poderá, por razão igual, disponibilizar qualquer informação que sustente uma decisão de recorte ético aceitável.

Creio que a motivação para admitir a elaboração de um testamento vital por parte dos doentes radica no receio de poder vir a ser escravizado por um poder médico, institucional ou tecnológico, aviltando-o na sua dignidade. A resposta ética a este desafio é a garantia da implementação de boas práticas médicas, consubstanciadas em vertebrados cuidados paliativos que sabem rejeitar a distanásia, impedir a obstinação, aceitar a finitude como momento integrador de uma vida que deve, serenamente, poder viver o seu fim.

Noutro enquadramento, o Testamento será irremediavelmente Mortal, porque ferirá o sentido da afirmação ética que a cada doente deverá outorgado.

Filipe Almeida,

professor da Faculdade de Medicina do Porto,

director do Serviço de Humanização do Hospital de São João,



Eutanásia/Bioética