Dossier

Um barco à pesca de vítimas

Daniel Serrão
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Da Rebeca da Bíblia temos o exemplo da mulher que ama o seu marido, Isaac, e procura proteger os seus filhos gémeos. No século XXI outra Rebeca quer matar os filhos dos outros com uma substância química para que não nasçam. O acto de abortamento é, quase sempre, uma tragédia pessoal, porque nenhuma mulher grávida decide destruir a outra vida que nela se desenvolve, - usando, por necessidade e confiadamente, uma parte do seu corpo -, sem um estremecimento de dor, de sofrimento e de culpa moral e porque a relação biológica entre mãe e filho é, desde o início da gravidez, muito forte e está para além de qualquer reflexão intelectual. É vínculo biológico, cuja força é a da protecção da sobrevivência da espécie no eco-sistema actual. A gravidez cruza, horizontalmente, todas as culturas, das mais primitivas às mais elaboradas, está apoiada nos grandes mitos fundacionais e nas narrativas das religiões mais antigas que sempre a consideram sagrada. Diariamente, um número incontável de mulheres, corajosas e serenas, protegem a sua gravidez e colocam no mundo os novos seres que vão manter sobre a Terra, em todas as latitudes e longitudes, esta espécie triunfante que é o Homem. As diversas culturas, em especial as de predomínio masculino, sempre tentam tirar à mulher a dignidade suprema de procriar e ser mãe, quer reduzindo-a a um papel passivo – a insensata e falsa teoria do homúnculo, que só o homem produzia e era colocado na mulher para nela se desenvolver – quer amontoando-as em harens para serem fecundadas pelos seus donos, quer engravidando-as por embuste ou violência. Estes comportamentos, embora não admitidos publicamente nas sociedades ditas desenvolvidas, continuam a estar na base do problema da chamada gravidez indesejada, ou seja, não desejada pela mulher. A Igreja Católica entendeu e bem que a relação humana que pode levar a uma gravidez é uma relação de pessoas livres, iguais em direitos e em deveres, que declaram, livremente, perante Deus em que acreditam, que querem unir-se e permanecer fiéis uma a outra. Assumem, igualmente, uma paternidade responsável gerando os filhos que, em sua consciência moral e recta, possam criar e educar com dignidade. Dito assim parece fácil; na realidade concreta dos casais católicos é, muitas vezes, difícil. Mas uma coisa é certa e segura: nunca, em nenhuma circunstância, o abortamento é admitido para solução de um problema do casal, seja ele qual for. Assim sendo, um barco, com uma “médica” ignorante e demagógica, veio pescar em águas erradas. As mulheres católicas que são a maioria silenciosa das mulheres portuguesas não são peixes para o anzol envenenado desta Rebeca e honram os seus compromissos de Fé, gerando os seus filhos com alegria e muito amor. Eu sei que, em Portugal, há franjas da nossa população, em particular nas etnias de imigração recente, onde todo o processo de procriação está perturbado. Promiscuidade sexual, gravidezes ocasionais muitas delas incestuosas, violações violentas e brutais de mulheres pouco menos que escravizadas, prostituição de adolescentes, famílias disfuncionais ou patológicas, miséria por analfabetismo e ausência de qualquer preparação profissional, machismo desenfreado, no qual a mulher é um objecto para usar e deitar fora, etc, etc. Quando neste lodo social emerge uma gravidez, que devia ser uma fonte de alegria e um grito de amor, ela vai ser desprezada como se fosse um fruto apodrecido desde a origem. Solução: um abortamento limpo, higiénico, imaculado, feito por pessoas competentes para matar bebés, seja com pílula, seja com ferros bem esterilizados e em assépticas salas de partos hospitalares. Nós, os católicos, não podemos aceitar esta solução final como a que foi preconizada para o povo escolhido por Iavé para ser luz do Mundo. A missão que nos cabe é a de apoiar cada mulher que, no seu desespero, vai decidir fazer-se abortar. Acolher esse desespero, analisar as causas, intervir sobre elas e sobre os seus efeitos, mobilizando os apoios de protecção social, de suporte das famílias difíceis, de carências de habitação e de trabalho e de intervenção nos bairros problemáticos, para que aquele abortamento e todos os outros não aconteçam e a mulher possa levar até ao fim a sua gravidez. Os católicos podem ser estes mediadores entre as dificuldades e as soluções possíveis, ao nível paroquial – não será melhor um grupo de apoio às grávidas em dificuldades do que uma equipa de futebol? – e mobilizando recursos das Juntas de Freguesias e das Autarquias, das Misericórdias, das Organizações de Solidariedade Social. Já há um banco alimentar contra a fome; porque não um banco social contra as causas de abortamento? Depois do referendo muitas iniciativas nasceram e estão solidamente implantadas nos terrenos onde os riscos de abortamento são maiores. Tenho a certeza de que nenhuma mulher resolverá fazer-se abortar se não estiver só nem abandonada pelo responsável da gravidez e puder encontrar quem a ouça, quem a ajude e quem a ame como a um ser humano desesperado e lhe mostre uma luz azul no fundo do túnel. Nos casos mais dramáticos, para os quais não há nenhuma solução, diremos como Madre Teresa de Calcutá: se não podes criar esse filho deixa que ele nasça e nós o receberemos no amor de Cristo. Quanto ao barco que se vá, para águas turvadas pela imundície, porque lá é o seu lugar, não é em Portugal. Daniel Serrão


Aborto