Fernando Soares, Bispo da Igreja Lusitana (Comunhão Anglicana)
Não me parece uma questão importante. Se nos lembrarmos de quanto no passado o nome de Deus foi usado para interesses ínvios, de que foram vítimas milhões de seres humanos. E isto aconteceu numa Europa em cujos contornos era imanente o carácter cristão das suas gentes e das suas instituições mais significativas. Era o tempo do conceito de “nação cristã”. Ainda, é hoje evidente que aquelas nações (cristãs ou não) que referem explicitamente o nome de Deus na sua lei fundamental são as que mais se esquecem d’Ele na sua prática política diária.
O nome de Deus não deve ser misturado e manipulado ao arrepio de interesses políticos. Muito mais importante do que inscrever o nome de Deus numa Constituição é que os representantes dos países que constituem a União Europeia se deixem tomar pela visão e preocupação do Reino de Deus nas suas vidas e nas suas decisões. O nome de Deus não é um “fetiche” ou “amoleto” para servir de “imagem de marca” de quem quer que seja. Jesus Cristo disse “pelos frutos os conhecereis” (S.Mat. 7,16) procurando dar-nos a indicação que são as “boas acções” e não as “boas declarações” que fazem conhecidos a grandeza e o amor de Deus.
Nesse sentido, o que é importante é que se creia e se afirme a soberania de Deus no momento em que se procura reflectir e refazer o projecto político, económico, social e cultural da Europa; é que se denuncie tudo o que impeça o desenvolvimento da vida em toda a sua plenitude, como expressão da vontade de Deus; é que se recuse o egoísmo e o individualismo, seja de pessoas ou nações, na construção da “casa europeia”, tendo em conta o bem comum, a comunhão e a inter-relação que Deus reclama para a construção do Seu Reino entre os homens e as mulheres; é que nunca se perca de vista a solidariedade para com os homens, as mulheres, os idosos os jovens, as crianças e os imigrantes que subsistem em ambiências de morte.
Mas, e a ausência de uma referência à herança religiosa cristã?
Todos sabemos como o cristianismo teve marca indelével no forjar da argamassa civilizacional dos povos da Europa que hoje somos. Porquê, então, a omissão da referência explícita à herança cristã no preâmbulo da nova Constituição Europeia? O cuidado em não ferir sensibilidades de outras heranças religiosas, como a judaica e a islâmica? O desejo de incluí-las numa só expressão “religiosas” e, portanto, de não querer realçar-se uma qualquer? A vontade de fazer esquecer uma visão humanista da vida, centrada numa outra experiência – de Jesus Cristo – bem diferente da que hoje vigora no “politicamente correcto” dos corredores de Bruxelas?
Mas a história é o que é e não o que porventura alguns desejam que tenha sido. Mesmo reconhecendo as significativas divergências religiosas de que a Europa foi palco, desde o século XVI, creio que ninguém porá em causa a influência decisiva do cristianismo na construção do continente Europeu. Basta olhar os monumentos espalhados pelos países que o compõem, atentar na história das ideias que aí proliferaram, nas preocupações de reis e outros governantes com a sua relação com o Deus de Jesus Cristo, para se perceber que a ambiência cristã - seja como acto de fé, ou de cultura, de arte, de pensamento ou mesmo de acção pura e simples – marcou um modo de ser e de estar, que nem mesmo o chamado século das luzes foi capaz de apagar. Fica a interrogação: mas, porquê a omissão? Será que alguém tem medo da herança cristã, ou do que ela pode ressuscitar em onda de esperança e de optimismo à margem das instituições políticas que actualmente detêm o protagonismo? Não sou capaz de responder. A história não se apaga, e na dos homens as omissões proporcionam muitas vezes curiosidades não pensadas. É o que espero, pois – quem sabe? –, perante a tendência actual na Europa de se querer esconder a vertente religiosa da vida, tal como o cristianismo a afirma, pode acontecer que o Espírito Santo pregue a partida já conhecida: transforme a morte em que muitos vaticinam a fé cristã, numa vida de força, que aceita a diversidade e apresta ao serviço alegre aos que sofrem. Aí, podemos estar certos, o nome de Deus inscrever-se-á não na Constituição, que muito poucos vão ler, mas no coração dos muitos que se deixarão tomar por essa outra realidade da vida.
Vila Nova de Gaia,
22 de Junho de 2003
Fernando Soares, Bispo da Igreja Lusitana (Comunhão Anglicana)