Dossier

Uma era da conectividade?

Alfredo Teixeira
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Em 1992, a «Instrução Pastoral Aetatis novae sobre as comunicações sociais no vigésimo aniversário de Communio et progressio», apresentava o terreno das comunicações sociais como lugar de uma ampla revolução técnica. Na perspectiva da Instrução, tal mudança não se esgotava na produção de novos meios, traduzia-se na forma como a humanidade se compreende a si própria. Tratava-se, por tanto, de uma revolução cultural. Poucos anos antes, em 1989, o filósofo italiano Gianni Vattimo publicava um pequeno ensaio acerca da «sociedade transparente». Vattimo interrogava-se sobre se o extraordinário desenvolvimento das competências comunicativas da sociedade contemporânea teria tornado a sociedade mais transparente – «transparência» no sentido Iluminista de sociedade mais consciente de si própria, mais capaz de envolver todos numa história unitária, num sentido progressivo de emancipação. O filósofo italiano concluía que o extraordinário desenvolvimento dos meios de comunicação de massa tinha, pelo contrário, tornado a nossa experiência social mais complexa. Isto porque favoreceu a multiplicação das visões do mundo, abriu a cena às minorias de todo o género e permitiu a visibilidade plural de todas as subculturas. As transformações tecnológicas posteriores, vieram dar mais densidade a estas observações. Os dois textos a que fiz referência tiveram o mérito de sinalizar estes importantes dinamismos de transformação, mesmo se a realidade os ultrapassou na escala. As inovações posteriores, no domínio das chamadas tecnologias da informação e da comunicação, aprofundaram a evidência de que as transformações em causa têm uma particular incidência na recomposição dos laços sociais. É necessário ter em conta o desenvolvimento das formas de comunicação em rede, acentradas, desterritorializadas, em tempo real, comunicação que permite não só chegar à informação, por via da lógica do hipertexto, mas também recriá-la sem as mediações hierárquicas que antes conhecíamos. O World Wide Web é o exemplo mais conhecido deste novo mundo. Mas, também neste caso, a leitura destas formas de comunicação em rede não pode resumir-se, sem resto, na ideia de uma globalização homogeneizadora da cultura. De facto, estes meios facilitaram a libertação das diferenças, a criação de um mundo em que cada vez mais indivíduos querem tomar a palavra – mesmo se se distanciam das formas políticas institucionais que conhecíamos. As mais recentes plataformas de comunicação, a que acedemos, pela Internet mostraram-nos um pluriverso de pequenas narrativas, onde, paradoxalmente, os meios que promovem um certo desenraizamento cultural são os mesmos que dão novas oportunidades aos «dialectos» locais. As tecnologias da informação e da comunicação beneficiam das tendências persistentes de miniaturização dos meios. Cada vez mais pequenos e sempre mais capazes, os meios favorecem a portabilidade e a individualização. Respondendo a uma cultura da mobilidade – os indivíduos não se definem pelas suas posições, mas pelos seus itinerários – as novas tecnologias quotidianizadas permitem a reconstrução de novas redes sociais que não se deixam explicar pelos contratos sociais que alimentaram a modernidade social – por isso, algumas instituições de tipo associativo, como os partidos políticos ou os sindicatos, vêem dissolver-se o terreno que sempre pisaram. O sociólogo Michel Maffesoli teve a necessidade de forjar um termo, «socialidade», para identificar as novas formas de criação de comunidade, distinguindo-as dos regimes de sociabilidade que edificaram as sociedades modernas – classes sociais, profissões, associações, etc. A socialidade descreve, nesta óptica, os laços sociais que se estabelecem de forma lúdica, privilegiando as dimensões afectivas, a comunhão de interesses, as formas de certificação mútua. Trata-se de comunidades «sem vizinhança». Mas a inviabilidade do território físico é acompanhada pela oportunidade de construção de novas redes criadoras de territórios simbólicos. Pode assim falar-se de uma era da conectividade, uma vez que, neste novo cenário, «estar-se ligado» é o imperativo maior. O indivíduo redefine-se socialmente num fluxo contínuo de informação. Penso mesmo que esta experiência do «contínuo» será, provavelmente, uma das características mais determinantes desta socialidade. O incremento da comunicação, neste domínio, pode dar às relações uma intensidade afectiva inesperada. Há alguns anos atrás vivi uma experiência significativa. Desenvolvia a minha actividade de docente em duas situações bem distintas. Trabalhava com alunos, na Universidade, num regime clássico de interacção em sala de aula, como é próprio do ensino presencial, e com alunos que participavam um curso em regime de e-Learning, cuja a interacção se desenvolvia, em boa parte, numa plataforma a que se acedia através da Internet. Aconteceu que nesse ano lancei um livro, numa iniciativa pública, para a qual convidei todos os alunos. Não esteve presente, no acontecimento, nenhum dos alunos que eu acompanhava presencialmente, face a face. Pelo contrário, contei com a presença de um grupo significativo de alunos do curso em regime de e-Learning, incluindo uma aluna que fez mais de 300 km para estar presente. É verdade que as competências cognitivas e as visões de mundo que neste contexto se desenvolvem promovem com facilidade uma certa deshistoricização da experiência. Encontramos sinais disto nas culturas juvenis. Debray descreveu o fenómeno como uma cultura da extensão: prioridade ao espaço em detrimento do tempo, do imediato em detrimento da duração (sampling e zapping). Na sua óptica, vivemos um alargamento vertiginoso dos horizontes e uma retracção drástica das cronologias, facilitando o fenómeno de deshistoricização. No meu contacto com os jovens que estão na Universidade, dou-me conta de que, falando de Aristóteles, Tomás de Aquino ou de Marx, para discutir um qualquer tema, rapidamente os imaginarão num debate síncrono (uma espécie de «prós e contras»), com uma percepção muito precária da profundidade histórica. Esta dificuldade afecta particularmente as identidades religiosas que sempre viveram de dois recursos fundamentais: a narrativa e a genealogia. Religião, arte ou ideologia, todos os sistemas simbólicos que visam ultrapassar o efémero se alimentam de processos transmissão cujo efeito mais visível se resume na acção de prolongar, fazer perdurar, salvaguardar. Em muitas situações, os principais problemas das Igrejas colocam-se mais na esfera da transmissão (vencer o tempo) do que na esfera da comunicação (vencer o espaço). São muitos os sinais de uma inscrição criativa, por parte das Igrejas, na sociedade da comunicação. A sua inscrição no processo de transmissão cultural apresenta mais dificuldades, porque estas dizem respeito ao problema mais amplo da organização da memória nas nossas sociedades. No entanto, parece inevitável reconhecer que as Igrejas, neste contexto, se podem tornar pólos de identificação para estes indivíduos à procura de «ligações», elas que têm no seu património uma singular experiência do que é construir laços comunitários. Alfredo Teixeira, Centro de Estudos de Religiões e Culturas (UCP)


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