Dossier

Uma (indesejável) vitória da abstenção

Pe. João António Pinheiro Teixeira
...

"A campanha teve, uma vez mais, excesso de propaganda e défice de esclarecimento" - realça o director da «Voz de Lamego»

Independentemente do peso que ela venha a ter nos resultados finais, é possível antecipar, desde já, que a abstenção se prepara para sair como a grande — embora indesejável — vencedora das eleições. Polarizada a atenção em torno de rumores, «abstivemo-nos» de discutir a saúde, a educação e a justiça. Tolhidos pela conjuntura, «abstivemo-nos» de traçar objectivos e de projectar horizontes. Multiplicam-se «topias» até à exaustão sem que se aposte numa «utopia» que nos desperte e mobilize. Quem, de uma forma consistente, se mostra empenhado na defesa da vida, na promoção da família e no combate à pobreza? Em vez de escutar a realidade, dá a impressão de que todos se escutam uns aos outros. Cada comício pouco mais é mais que uma «réplica» à «indirecta» do adversário, o qual, não se dispensando de uma «contra-réplica», motivará uma «tréplica» numa espiral a que não há meio de pôr fim. Assistimos, impotentes, à essencialização do que é relativo e à relativização do que é essencial. Falta-nos «logos» (discurso), «ethos» (ética) e «pathos» (entusiasmo). Não espanta, por isso, que as fracturas sejam mais pessoais que ideológicas nem que as clivagens se tenham tornado mais «intrapartidárias» que «interpartidárias». As maiores fricções ocorrem dentro dos partidos. É aí que, frequentemente, se localizam não só os adversários, mas também os inimigos. Não é saudável. Mas é trivial. Infelizmente. Daí que, por mais que queiramos fugir a um discurso decadentista, não possamos deixar de lastimar o progressivo depauperamento que a nossa vida colectiva tem vindo a sofrer. A passagem «do trágico para uma espécie de carnavalização de todas as experiências» — tendência detectada por Eduardo Lourenço — está a encontrar em Portugal um vasto campo de penetração. É por isso que os vícios da política não são um exclusivo dos políticos. Quem negará que o cidadão comum consome mais facilmente a imagem, o incidente e o «sound byte» do que o discurso, o programa e a acção? Por conseguinte, não é curial emitir avaliações sumárias e julgamentos impiedosos já que todos estamos implicados nesta situação. A regeneração que tanto desejamos tem de começar, pois, pela base, por nós. Não consintamos que a política continue a ser vista como «um problema deles», tanto mais que ela é acima de tudo «um problema nosso». Não podendo fazer tudo, poderemos fazer muito. Desde logo, não ficando em casa no próximo domingo. Votar é um direito que há-de ser encarado como um dever e assumido como um imperativo. Apesar do desencanto que se nota — a campanha teve, uma vez mais, excesso de propaganda e défice de esclarecimento —, a ninguém é lícito alhear-se de uma afirmação tão substantiva da cidadania. Nomeadamente depois da lição que nos deram os nossos irmãos iraquianos (que, por entre as maiores ameaças, foram votar em massa), não é aceitável que um qualquer comodismo nos iniba de participar naquele que é o exercício supremo da liberdade: discernir, escolher, decidir. Pe. João António Pinheiro Teixeira


Igreja/Política