Editorial

A parábola de Foz Côa

António Rego
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Foi em 1994 que Portugal acordou com mais uma originalidade: o achado do maior complexo de arte rupestre paleolítica até então conhecida. No Vale do Côa, afluente do Douro. O país parou. As televisões desdobraram-se em directos. Acenderam-se grandes discussões sobre a construção de barragens e outros artefactos que poderiam pôr em risco um evento com 20 000 anos de existência. Alguns não viram mais que toscas garatujas de gente primitiva que, coitada, muito fazia para o estado civilizacional em que se encontrava. Os mais atentos, tentaram interpretar os eloquentes sinais de criatividade e arte. Não se trata, afinal, de arabescos primários sobre gigantes penedos, mas de uma expressão iconográfica tão importante para a história como para a arte. Choveram promessas de museus e investimentos turísticos. Uma espécie de mobilização dos olhares de Portugal para esse tesouro de história e arte. O tempo correu. Arrefeceram os ânimos. E as gravuras lá continuam, pacientes, a testemunhar a pressa dos nossos dias, as narrativas políticas de ocasião, a sequência de grandes acontecimentos e de intrigas insignificantes. Continuam, à superfície ou imersas, no seu lugar firme e belo da história e da arte, para além das discussões de superfície e de todas as sentenças de circunstância que sobre essas pedras milenares caíram. Uma espécie de parábola para este tempo de Natal que tanto celebra o efémero como o eterno, o superficial como o profundo, a velocidade dos dias, como a sentinela do tempo. Penso também na Igreja que não é nem peça granítica nem uma estátua de cera. Não enfrenta a história com a indiferença de um castelo impenetrável, nem com a leviandade de um cata-vento dobadoura. É ontem, hoje e amanhã. Foz Côa, entre a pressa do agora e a resistência indestrutível de vinte milénios, é uma história viva, um eloquente discurso para os nossos dias. António Rego


Reflexo