A cidade, para muitos, foi um mito, um sonho. Lugar do bem vestir e bem falar. Lugar de todos e de ninguém. Lugar visitado para ter muito que contar no regresso à terra, à pequena terra, mais longe ou mais perto, a província, com o seu tom de ruralidade, passos controlados, histórias sem fim repetidas pelos vizinhos. A aldeia era o espaço estreito, o horizonte apertado. Longe do progresso. Próximo do afago familiar. A Terra.
Cidade e aldeia eram dois pólos que se desejavam e combatiam.
Há quanto tempo era assim? Há muito e há pouco. Mesmo quando se diz que o mundo inteiro é uma pequena aldeia, devassada pelos sons e pelas imagens dos media que não cessam de narrar o que se passa por detrás da vidraça de cada família e cada cidadão. A cidade global não tem hoje portas nem janelas, línguas, ideologias, religiões, raças ou culturas específicas. É essa amálgama de anónimos que se desconhecem e irremediavelmente se cruzam.
Talvez seja o tempo de rever a definição de aldeia como mãe de todas as virtudes e a cidade mãe de todos os vícios. É verdade que a família, as crianças, os idosos, os vizinhos, os fregueses e os paroquianos se encontravam numa comunhão saborosa de histórias comuns, patrimónios identificados e valores claros na feitura da história. Mas importa não perder a dimensão de carências primárias para muitos. A saúde nas mãos do João Semana exausto, a alimentação dependente dos animais soltos do quintal, a escola como um espaço de derrota para grande parte das crianças, a ignorância e o desinteresse pelo resto do mundo ou mesmo pelo destino do seu próprio país... e por aí adiante, uma sequência dolorosa de carências suportadas pela infinita paciência do povo.
A cidade pode hoje reencontrar muitos dos mitos perdidos da aldeia e potenciar os grandes valores que oferece à família e à comunidade um sentido de vida e um horizonte partilhado com todo o país e solidário com o resto do planeta. Nem a cidade nem a aldeia se podem hoje alimentar de nostalgia. Mas a comunidade cristã duma cidade pode facultar espaços, encontros e celebrações que reatam fraternidades perdidas, famílias desencontradas, amigos distanciados, idosos agonizados na sua solidão.
Ao domingo, às vezes, não muitas, costumo dizer no início da celebração Eucarística: “Não pensem que fazem um grande favor a Deus, saindo das vossas casas para um encontro celebra-tivo na Igreja. É Deus que nos arranca das solidões e nos faz encontrar como comunidade”. Na aldeia ou na cidade a celebração da fé restitui-nos uma dimensão surpreendente da Cidade de Deus. Ou da Aldeia Global.
António Rego