Editorial

E Jesus dormia...

António Rego
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Nunca as águas foram tranquilas nem os ventos favoráveis. Ou melhor, o tempo da tranquilidade foi o mais perigoso

Quando menos se espera levanta-se uma tempestade. Num lago rodeado de montanhas, aparentemente protegido. Com pescadores experimentados, batidos por todos os ventos e habituados às águas agitadas. Da arte de marear todos sabiam mais que Jesus. Todos, porém, para Ele se voltam pedindo socorro. E Ele parecia nem ouvir os primeiros gritos de aflição, pois simplesmente dormia. Como não sentiu o bramir das ondas ou os roncos do vento ou a braveza daquele pequeno oceano. Mas os discípulos, com o pânico na alma pediram socorro. Possivelmente os gritos eram mais medo que perigo real. O medo é um terrível inimigo para os que navegam em qualquer embarcação da vida. Com um ligeiro sinal, Jesus acalmou a tempestade. E chegaram tranquilamente à margem aqueles que quase se consideravam náufragos.

E a barca da Igreja. Ventos e tempestades, Pedro e os outros, sopros do Espírito e violência de vagas alterosas para uma nau que sempre se reconheceu como frágil. Sempre assim foi na sua história. Nunca as águas foram tranquilas nem os ventos favoráveis. Ou melhor, o tempo da tranquilidade foi o mais perigoso, deixando as mãos fora do leme, o olhar distraído do farol, os pescadores esquecidos da missão, os mestres de bordo entretidos com fardas e galões. Estonteados com o poder aliaram-se a ricos e criaram silêncios cúmplices. Até que uma onda, um baixio, uma escuridão repentina, um mar de levante, pareciam apoderar-se do barco e provocar-lhe um tombo ou um rombo não distante dum possível naufrágio. Como sempre todos se voltam para o Mestre pedindo a acalmia do vento e das águas quantas vezes adversas por desleixo dos timoneiros.

Assim foram rolando as ondas do tempo e as vagas dos séculos, as espumas dos modos e modas, as fraquezas dos lemes que muitas vezes perderam o sentido do porto. E o Mestre sempre lá, acompanhando a viagem, vigiando o mar numa espécie de sonolência distraída e desinteressada desse percurso breve de séculos e milénios, insignificantes, face aos oceanos da eternidade.

Desde que partiu do cais de embarque a Igreja mesmo una e santa acumulou traições, pecados, corrupção de poderes e costumes, rasgos cruéis na túnica inconsutil, concubinatos sacrílegos do sagrado com o profano, volúpias de grandeza e oiro, estreiteza orgulhosa de olhares intolerantes sobre pecadores e dissidentes. Tudo isso ao lado do coro imaculado e vibrante dos Cento e Quarenta e Quatro Mil que nunca deixaram de entoar ao Cordeiro o hino sempre novo da humanidade remida e do Ressuscitado que recebe os frutos da semente do bom semeador. E que nos pergunta nas viagens das nossas pequenas tormentas: porque temeis, homens de pouca fé?

António Rego



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