Editorial

Mote para uma telenovela

António Rego
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Primeiro, a imaginação. Nem censura, nem repressão, nem redução de meios, nem diminuição de notícias. Apenas isto: libertar o povo da inquietação desatinada dos telejornais. Caiu um avião com 400 pessoas na Patagónia? Não há necessidade de afligir potenciais viajantes com essa notícia. Um tornado arrasou 20 cidades? Que adianta a notícia? Explodiram 20 bombas e mataram 800 pessoas? O vereador roubou e fugiu? Mais uma criança raptada? O desemprego aumenta? Mas não há outras novidades? Para tranquilidade do povo, as televisões fizeram um pacto: dar apenas boas notícias, agradáveis, que o povo já tem muito com que se atribular. Assim, uma troca de horário: às 20 horas a telenovela em forma de notícias. Depois, em ficção, todos os dramalhões da terra, que são verdade, mas não naquela hora. As pessoas divertir-se-iam com a violência da irrealidade e a irrealidade do bem e da paz. Longe da fúria e da barbaridade das imagens acontecidas no dia, na hora, em directo. Que há, neste todo, de mentira e verdade? Como ficam um cidadão e uma sociedade navegando nestas águas que ninguém sabe analisar como límpidas ou salobras? Vem a pergunta: o problema será da tecnologia que tornou inevitável sabermos tudo sobre a hora ou mesmo antes de acontecer? E a rádio, a televisão, o telemóvel, a net e o correio electrónico? De que falam as pessoas? Que factos e fantasias enchem as suas mentes, alimentam os seus monólogos, diálogos, discussões, afirmação, recusa, instintos e nobreza? Falam bem do chefe, do colega, da sogra, do presidente? Em cada ser começa esta complexidade. Na educação das crianças com as suas agressões, transgressões, mentiras. Nos jovens que desafiam, em rotura, qualquer lei convencionada e sobretudo imposta. E por aí adiante, nos mecanismos do afecto, da sexualidade, da auto afirmação, da defesa como castelo do eu, da intriga, divertimento... ou nos simples desaires da aldeia… Será o ser humano apenas um animal com vastas áreas de selva e curtas fímbrias de nobreza e transcendência? Será que o bem, o belo, a dádiva, a festa, a harmonia, não têm dimensão e brilho suficientes para preencher o quadro da vida que todos nós gostamos de desenhar na nossa existência? Uma pergunta mais: os agentes de comunicação sujeitos ao poder económico e político como podem gerar outro tipo de media? E quem teria autoridade e capacidade de os controlar? O poder? Económico, político, popular anónimo? Bom mote para uma telenovela não muito cor-de-rosa. António Rego


Reflexo